Luanda Leaks

Portugal ignorou as recomendações internacionais em matéria de prevenção da Corrupção e do Branqueamento de Capitais

Ao longo de anos, Portugal ignorou as recomendações internacionais relativamente a PEPs, e com isso perderam não apenas os angolanos, mas também os portugueses.

Os investimentos milionários de Isabel dos Santos, tidos como indispensáveis e necessários, sobretudo durante os anos da Troika em Portugal, foram canalizados através do nosso sistema financeiro, de participações em empresas, e de aquisição de bens imobiliários. Tudo indica que à revelia da legislação nacional e da EU em matéria de branqueamento de capitais, sem manter presentes os compromissos assumidos pelo Estado Português no quadro da Convenção das Nações Unidas contra Corrupção (UNCAC) e de outros instrumentos internacionais destinados a prevenir e combater a corrupção e infrações conexas em defesa da Democracia e dos Direitos Humanos.

A transposição das Diretivas Europeias dirigidas à prevenção e combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo (BCFT) para a legislação nacional determinou a adoção de medidas reforçadas de identificação e diligência ante Pessoas Politicamente Expostas (PEPs). Estas pessoas são chefes de Estado, chefes de governo, ministros, membros dos órgãos de direção de partidos políticos, juízes de tribunais supremos, deputados, ou outros titulares de cargos públicos que, pela circunstância de terem exercido funções públicas importantes podem apresentar um risco mais elevado de corrupção, e também os seus familiares mais próximos ou outras pessoas que, não sendo familiares, detém relações de grande proximidade com titulares de cargos públicos.

Porém, Isabel dos Santos e o seu marido foram recebidos entre nós como empresários de sucesso e investidores desejados, não recaindo sobre si e os seus negócios os especiais deveres de avaliação que cumpre observarem-se para PEPs, ainda que estivéssemos perante a filha do Presidente de uma nação classificada como uma das mais corruptas do mundo pelos principais indicadores internacionais, como o Corruption Perception Index da Transparency International.

Quando se iniciaram os primeiros processos judiciais contra Isabel dos Santos em Angola, as autoridades portuguesas afirmavam a sua total disponibilidade para colaborar, ao mesmo tempo que faziam por apartar as investigações em curso dos negócios da angolana em Portugal, como se não existisse qualquer ligação entre os fluxos financeiros ilícitos identificados pela PGR de Angola e os investimentos no nosso país.

Nas palavras do primeiro-ministro António Costa, “as medidas que sejam adotadas em relação à acionista não afetarão necessariamente as empresas. As empresas têm uma distinção entre aquilo que são os seus capitais, os seus recursos, e aquilo que é o capital e os recursos dos seus acionistas”, e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que “o investimento vindo desse país [Angola], como de outros países, como de cidadãos de todo o mundo, é bem-vindo, naturalmente no respeito da constitucionalidade e da legalidade. Continua a ser bem-vindo”.

Meses depois destas afirmações, o governo decidiu nacionalizar as ações de Isabel dos Santos na Efacec (71,73%), e os bancos portugueses que financiaram a compra destas ações em 2012, incluindo a Caixa Geral de Depósitos (100% estatal), encontram-se atualmente a reclamar em tribunal créditos vencidos no valor de 29 milhões de euros.

O novo “El Dorado”

No período de crise financeira em particular, Angola tornou-se um país privilegiado de destino para milhares de portuguesestrabalhadores e empresas – aproveitando a relação de grande proximidade com esta ex-colónia portuguesa e o boom económico que aí se vivia

Hoje, andando pelas ruas de Luanda, a capital, são cada vez menos os negócios portugueses que resistem, fruto da crise económica que se abateu sobre este país com a queda do preço do petróleo a partir de final de 2015, mas também de um ambiente de negócios manietado pela corrupção. É bom lembrar que até 2018 a legislação angolana exigia a todas as empresas operando em Angola que tivessem na sua estrutura societária capitais nacionais, não raras vezes encabeçados por facilitadores detentores de cargos públicos e/ ou seus “testas-de-ferro”.

Não temos acesso a dados oficiais que nos permitam perceber até que ponto os negócios portugueses em Angola e a vida de milhares de famílias portuguesas ali vivendo e trabalhando foram afetadas pelos níveis elevados de corrupção no setor público desse país. Mas, tendo presente as debilidades na implementação da Lei da Probidade Pública em Angola, que impede o enriquecimento ilícito de titulares de cargos públicos, e as falhas apresentadas por Portugal no compliance relativamente à implementação da Convenção Anti-Suborno da OCDE, estimamos que milhões de euros se tenham desvanecido no dédalo de relações comerciais irregulares, senão mesmo ilegais.

Na foto acima Carla Dias Santos em julho de 2014, com Maria Luísa Abrantes, ex-Mulher de José Eduardo dos Santos e Presidente da Agência Nacional do Investimento Privado de Angola, e a sócia N’Vula Van-Dúnem Camacho, filha de Sílvia Van-Dúnem, à época diretora do serviço de oftalmologia do maior hospital do país, e de José Vieira Dias Van-Dúnem, membro do Comité Central do MPLA e ministro da Saúde na altura.

Tal como noticiado pelo Observador, esta empresária portuguesa do setor da oftalmologia acusa os sócios angolanos de a terem burlado. Questionada sobre os factos que reporta sobre a sua relação com a família Van-Dúnem poderem configurar ilegalidades, e sobretudo a circunstância de Sílvia Van-Dúnem figurar no negócio enquanto “testa-de-ferro” dos pais, ambos titulares de cargos públicos, admite ter desvalorizado os aspetos legais e deontológicos “porque estava em África e lá é assim com todas as negociatas”, acrescentando que a única coisa que de que se arrepende é de “não ter feito o negócio sozinha”.

Em 2017, Carla Dias Santos aparentava desconhecer que as empresas portuguesas incorrem em responsabilidades penais pela prática de crimes de corrupção no comércio internacional, ao mesmo tempo que o governo português afirmava que a “crise não pode servir para fechar os olhos à corrupção no comércio internacional”, assumindo o seu firme compromisso com os princípios inscritos na Convenção da OCDE.

No comunicado do Governo de Portugal, datado de março de 2017, a Secretária de Estado da Justiça, Anabela Pedroso, denunciou as dificuldades de obtenção de prova da prática destes crimes noutros estados, dizendo que “é fundamental encontrarmos formas de ultrapassar estas dificuldades, não só quanto aos Estados Partes na Convenção, mas sobretudo em relação a países terceiros onde, muitas vezes, o crime de corrupção nas transações comerciais internacionais acaba por ter reflexos que se traduzem na perda de recursos económicos e riquezas naturais”.

A luta contra a corrupção de agentes públicos estrangeiros nas transações comerciais internacionais não depende apenas da colaboração entre Estados, mas também da capacidade instalada em Portugal para investigar esta tipologia de crimes e, igualmente, do envolvimento ativo do setor privado e das instituições que regulam a sua atuação.

Foto: Rui Duarte Silva/ Expresso