Contratação Pública: a pedra no sapato do PRR

 

A Comissão Europeia acaba de anunciar que enviou mais uma notificação a Portugal sobre a desconformidade da legislação nacional relativamente às regras da União Europeia em matéria de contratação pública. Depois da primeira carta, enviada em outubro de 2019, a Comissão Europeia voltou a detetar problemas na legislação portuguesa, nomeadamente decorrentes das alterações efetuadas ao Código dos Contratos Públicos, em maio deste ano.

O que dissemos aquando da proposta do Governo, também a Comissão Europeia o diz: que o aumento dos montantes para adjudicação por ajuste direto, a aceleração dos procedimentos ou a inscrição de preferências locais e regionais na celebração de contratos públicos ferem as regras europeias.

Os especialistas da TI Portugal que lideram o primeiro Pacto de Integridade no nosso país lançaram o alerta no jornal Público, defendendo que a proposta do governo “escancara[va] a porta ao despesismo, ao favorecimento, ao clientelismo e à captura por parte de interesses privados”, e que “o plano do governo para gastar a pipa de massa que vem da Europa é péssima política pública”, porque não só não resolve problemas estruturais como aumenta exponencialmente os riscos de corrupção.

Contra a opinião de inúmeros peritos, e até mesmo do Tribunal de Contas, a Assembleia da República aprovou a nova lei instituindo a alteração do Código dos Contratos Públicos e medidas especiais de contratação pública aplicadas, entre outros, a projetos financiados ou co-financiados por fundos europeus. O objetivo, assumido pelo Governo e endossado pela maioria dos deputados, é garantir a rapidez na execução dos fundos europeus, designadamente do Plano de Recuperação e Resiliência negociado com a Comissão Europeia.

Quando consultado, o Tribunal de Contas, então ainda liderado por Vítor Caldeira, defendeu que a proposta de alteração das regras de contratação pública “aumenta[va] as possibilidades de conluio na contratação pública e distorção de concorrência”.

Não obstante os riscos identificados por tanta gente competente, e gravidade dos seus impactos para o crescimento sustentável de Portugal, o plano de assalto aos fundos europeus foi avante.

Na TI Portugal lembramo-nos bem da campanha difamatória de que fomos alvo por ousar afirmá-lo sem rodeios – que em Portugal estava a ser preparado um assalto aos fundos europeus – e que nem a novel Estratégia Nacional Anti-Corrupção seria capaz de travar.

São positivas todas as iniciativas conducentes ao reforço da transparência e do combate à corrupção na contratação pública – por exemplo, a inclusão dos Pactos de Integridade enquanto boa prática –, assim como todas as medidas que permitam simplificar, flexibilizar e acelerar os procedimentos de contratação pública sem colocar em causa os avanços que se foram conseguindo alcançar em matéria de política anti-corrupção.

A contratação pública é uma área nuclear de intervenção do Estado, sobretudo em alturas de crise, porque alavanca o tecido económico e o desenvolvimento das comunidades locais e regionais. Deve ser entendida como um recurso ao serviço dos interesses de Portugal e em benefício da melhoria do serviço público e do progresso do país nas suas diferentes dimensões. Não como uma pedra no sapato do Plano de Recuperação e Resiliência gizado para nos salvar, em cinco anos, do estado de entropia em que nos vimos arrastando, sem adoção de soluções que nos permitam reconfigurar o modo como se processa a utilização dos recursos públicos, e a sua regulamentação e fiscalização.

Portugal tem agora dois meses para responder aos argumentos apresentados pela Comissão Europeia. Caso contrário, Bruxelas pode decidir-se a dar seguimento com um parecer fundamentado, ou seja, ordenar a correção das falhas identificadas no cumprimento da legislação europeia.