O chão debaixo dos pés e o caminho à nossa frente

Os tempos são difíceis e a corrupção parece instalada e poderosa. Mas é possível derrotá-la, passo a passo, com os olhos no futuro

A confiança dos portugueses nas instituições é uma preocupação cada vez mais assumida por responsáveis políticos e líderes de opinião. A sucessão de escândalos de má conduta ética e de conflitos de interesses, quer no Parlamento (onde este ano surgiram novos casos relacionados com o registo de presenças dos deputados, a utilização de endereços que não correspondem à morada efetiva dos deputados para cálculo de despesas de deslocação ou o duplo pagamento de viagens para as ilhas) aumentou o fosso de desconfiança entre eleitores e eleitos.

Casos de conflitos de interesses, má conduta ética e, no limite, crimes de corrupção ou relacionados com o abuso de funções públicas revelam que as instituições continuam permeáveis a situações de aproveitamento dos cargos para benefício particular. Mas, pior ainda, revelam como as instituições públicas – com o Governo e o Parlamento à cabeça – não têm vontade ou capacidade de estabelecer padrões éticos e de conduta aos seus membros, nem serem vigilantes e atuantes, quer para prevenir abusos quer para puni-los quando eles ocorrem. Quando as instituições não valorizam a ética e não desenvolvem proteções contra abusos particulares, os vícios dos maus políticos tornam-se os vícios da própria instituição que os protege. E quando isso acontece aprofunda-se o fosso da desconfiança e do alheamento dos cidadãos face às instituições democráticas, que não só deixa o campo aberto à corrupção como, no limite, faz perigar a própria democracia.

Apesar de tudo, tem havido avanços. Sobretudo no plano judicial, o Ministério Público está hoje mais determinado no combate à corrupção. A nova procuradora-geral da República, Lucília Gago, já reafirmou a centralidade deste tema na agenda do Ministério Público, e sublinhou inclusivamente que a recuperação de ativos será uma das prioridades do seu mandato – para que à punição criminal dos corruptos corresponda também a recuperação para o Estado dos bens roubados por via do crime. São prioridades cruciais, que têm de ser acompanhadas de um aumento de recursos e de um reforço da autonomia financeira do Ministério Público, que continua a a trabalhar com um défice de recursos e capacitação que ameaça a eficácia da luta contra os abusos dos poderosos.

Os portugueses têm hoje elevadas perceções de corrupção, que não se referem apenas ao desvio de recursos públicos nos negócios do Estado, mas a um tipo de corrupção mais insidioso e muito mais danoso para a democracia: a captura do Estado por grupos de interesses organizados com acesso desproporcional aos decisores e enorme capacidade de influência sobre a ação – ou inação – dos poderes públicos. É essa corrupção sistémica que é urgente combater no futuro próximo, a começar pela legislatura que se iniciará com as eleições de outubro de 2019. Isso implica liderança política.

Apesar de cada vez mais o combate à corrupção surgir nos discursos dos responsáveis políticos, a ação tarda em chegar. A sucessão de casos de má conduta e falta de ética – que por sua vez abrem caminho a casos importantes de grande corrupção – é um sinal de alerta para a necessidade urgente de travar a perda de legitimidade da democracia e revalorizar as instituições democráticas. Em resposta a casos de falta de ética e conflitos de interesses, o Governo implementou um código de conduta que já provou ser inútil ou inócuo, enquanto a Assembleia da República vem discutindo há mais de dois anos um conjunto disperso de medidas de reforço da transparência (que não estão alicerçadas em estudo aturado dos problemas e vulnerabilidades, ou num debate público alargado sobre os problemas), mas tarda em tomar medidas.

No Parlamento continua a vigorar a cultura de que cabe a cada deputado vigiar o seu próprio comportamento, porventura com alguma intervenção dos grupos parlamentares, mas sem que a própria Assembleia estabeleça regras e mecanismos de fiscalização. A Subcomissão de Ética nunca identifica (muito menos sanciona) conflitos de interesses entre os deputados e, apesar de discutir e promover alterações pontuais nalguma lei ou regulamentos, o Parlamento – e, por extensão, a generalidade dos partidos políticos – continua a não perceber a necessidade urgente de um sistema nacional de integridade que defenda as instituições do dano causado por persistentes casos de abuso ético.

Os responsáveis políticos têm de aceitar, com humildade, que estes casos são tóxicos para a confiança dos cidadãos na democracia e têm de convocar a academia e a sociedade civil a participar numa discussão aberta sobre as melhores formas de resolver estas falhas e proteger – e aumentar – a qualidade da democracia. Queixarem-se dos populistas ou da comunicação social revela uma mentalidade de cerco, em que os políticos não confiam nos cidadãos, que por sua vez não confiam nos políticos. É um ciclo vicioso que tem de ser atalhado com abertura, humildade, franqueza e frontalidade. O que tem faltado é liderança política para encarar o problema e enfrentá-lo. Continuamos a perder oportunidades para exercer essa liderança e, olhando para a degradação das democracias a que assistimos um pouco por todo o mundo, corremos o risco de não termos muitas mais oportunidades para desperdiçar.