O que está errado nas narrativas de prevenção de match-fixing?
No presente artigo, Marcelo Moriconi, investigador da Transparência e Integridade (Projeto AMATT) e do Centro de Estudos Internacionais, defende e explica por que razão existe um discurso de prevenção de match-fixing oficial – repetido pela Interpol, FIFA, UEFA, EPFL e muitas outras instituições que estão a desenvolver programas educativos para prevenir o fenómeno – que, infelizmente, está muito distante da realidade.
Desde que a corrupção se tornou um problema-chave da agenda política, social e académica, tanto consultores, como académicos têm obtido muita informação acertada. Têm uma explicação estatística sobre os motivos de a corrupção ser prejudicial, incluindo correlações e causas da mesma. Tanto “grandes nomes” como instituições menos conhecidas têm desenvolvido programas para combater o fenómeno. Contudo, em geral, todas estas narrativas acreditavam que a corrupção se deveria à existência de uma “maçã podre”: uma que poderia ser facilmente isolada ou ameaçada com nova legislação, penas pesadas, novos esquemas institucionais, novas explicações morais. Além disso, quase toda a gente estava a favor de parar a corrupção, de acordo com a narrativa oficial – o Estado, os políticos, os empresários e, “mais importantes” que estes, os consultores moralistas e os académicos. A vontade política – para estas perspetivas engenhosas – era abundante. Há vinte anos, a corrupção era um problema; hoje em dia é a norma da política. Já não é uma questão de haver uma “maçã podre”; é uma questão de problemas estruturais, de valores, de interesses. Sempre que há uma nova fuga de informação, seja qual for (Wikileaks, os Panama Papers, ou qualquer outra), muitas pessoas ficam surpreendidas por existirem mais provas de algo que já sabem mas em que não querem acreditar totalmente. Nas palavras de Lacan, ou do filósofo Slavoj Zizek, estamos perante uma Negação Fetichista.
Atualmente, académicos e consultores alteraram o seu foco e começaram a investigar a tolerância à corrupção, sobre como políticos, empresários, eleitores e a sociedade em geral usam e toleram práticas corrupta. Ironicamente, a consequência do caso “Mani pulite” foi Berlusconi; a consequência da indignação cívica na América do Sul foi o populismo; a consequência do escândalo da FIFA foi… Esqueçam, não é hora para pesadelos… Ainda. Nos estudos sobre a corrupção, perdemo-nos entre o dilema do discurso público e do discurso escondido. O discurso politicamente correto da pseudo-moralidade derrotou o discurso escondido do interesse real e da política. Estudos sobre “Match-fixing” – e particularmente sobre campanhas de prevenção da manipulação de resultados desportivos – podem estar a ir pelo mesmo caminho. Como foi demonstrado em “The official football match-fixing prevention discourse as a cognitive limitation”, publicado na revista “Soccer & Society”, existe um discurso de prevenção oficial repetido pela Interpol, FIFA, UEFA, EPFL e muitas outras instituições que estão a desenvolver programas educativos para prevenir o fenómeno. Infelizmente, em muitos casos, esse discurso está distante da realidade.
Por que é que este discurso é limitado? Está baseado em três ideias centrais: a) o fenómeno é originado pelo crime organizado; b) a desumanização do alegado criminoso; c) o medo é um fator preventivo. A primeira premissa define quem são os manipuladores. Como declarou um representante da UEFA durante uma conferência, os manipuladores de resultados desportivos são – segundo o discurso oficial – indivíduos do mundo do Crime Organizado (da Máfia, das Tríades Asiátias e de outras organizações criminosas), e o retorno financeiro é a única coisa que lhes interessa. O dinheiro que eles usam é sujo, proveniente de negócios de droga, venda de armas, roubo e prostituição. Os “match-fixers” são “pessoas perigosas” e o fenómeno “é uma forma de lavagem de dinheiro”. Segundo a Interpol e a FIFA, a manipulação de resultados acontece porque jogadores, treinadores e árbitros ignoram como os manipuladores trabalham. O discurso institucional assume que, caso eles estivessem informados, estes atores desportivos recusariam participar em “match-fixing”. Segundo esta narrativa, os mesmos defendem, em primeiro lugar, a verdade desportiva e o amor pelo desporto: os jogadores adoram o desporto, não há qualquer interesse económico que possa ser mais forte do que este amor. Nesta narrativa, as instituições do Futebol são apresentadas como agentes incorruptíveis, sofrendo com este problema enquanto tentam preveni-lo. O “match-fixing”, portanto, é um fenómeno que advém de fora da esfera institucional, do crime organizado.
Esta estratégia também serve para legitimar a esfera institucional do Futebol, que tem sido frequentemente criticada nos últimos anos devido à falta de transparência e alvo de diversas denúncias de corrupção. Além disso, distanciar o mundo do crime do mundo do desporto permite desviar a atenção do discurso e evitar que se foque em personalidades relacionadas com grupos criminosos, ou atividades opacas, que entraram no mundo do Futebol enquanto empreendedores ou agentes. O discurso oficial liga a Máfia à prostituição, dando-lhe uma conotação negativa ao considerá-la uma fonte de dinheiro sujo. Paradoxalmente, as ligações entre o Futebol e a prostituição são sobejamente conhecidas. Se incluirmos estes factos – externos ao discurso oficial – e se mantivermos a lógica narrativa, a mensagem seria redefinida: o mundo do Futebol também seria uma fonte de dinheiro sujo, por estar a usar atividades que o geram, como é o exemplo da prostituição.
Passemos à segunda premissa. Um problema permanente nos estudos de violência e crime é a “desumanização do ciminoso”. A maioria das análises baseiam-se na premissa de que o crime é errado per se e que quem o comete é alguém perigoso. Não existe a hipótese de ter compaixão pelo criminoso e não devemos tentar encontrar justificações para os seus actos. A narrativa do “match-fixing” segue o mesmo caminho e define os manipuladores como “pessoas sem respeito pela vida humana”: são pessoas perigosas sem escrúpulos, que querem agredir gravemente outros indivíduos. A Interpol e a FIFA, nos seus módulos de prevenção, transmitem alguns avisos aos seus alunos: “Os manipuladores podem tentar tornar-vos viciados em droga ou em jogo” e “Os manipuladores vão aproveitar-se dos vossos pontos-fracos ou segredos, e irão chantagear-vos”. Contudo, quantos jogadores foram agredidos e/ou mortos por terem recusado participar em esquemas de manipulação de resultados? O perfil cruel que a UEFA divulgou aplica-se apenas a um número reduzido de casos.
A história continua. Um antigo membro da Máfia, Michael Franzese, foi uma das personalidades escolhidas pela FIFA e pela Interpol para ensinar sobre “match-fixing” e como preveni-lo. A real semântica do discurso deveria ser: um “gangster” não tem escrúpulos e é uma pessoa perigosa que não tem interesse pela vida humana. No entanto, sempre que se encontra no lado oposto e decide colaborar com o que as instituições consideram ser uma “boa causa” – pelo menos aquelas que definem a narrativa preventiva oficial – ele enche a sua alma com amor, utilidade, inteligência e amor pelos outros. Além disto, a biografia de Franzese modifica outro ponto da lógica do discurso: uma pessoa pode facilmente abandonar a Máfia e voltar a fazer uma vida normal, na qual até pode ser reconhecida e prestigiada por falar contra o crime organizado.
Finalmente, se os criminosos são pessoas assim tão perigosas, então o problema institucional agrava-se pois há muitos estudos dedicados a enumerar as ligações entre as instituições desportivas – ou alguns clubes – e pessoas relacionadas com grupos mafiosos, líderes de clubes com passados ou presentes turbulentos, e altos representantes institucionais que se aproveitam das suas posições de poder para fazerem negócios ilegais, tráfico de influência e corrupção. Um discurso de prevenção deve ser lógico e suficientemente convincente. A lógica persuasiva deve ser credível, fácil de entender. Caso contrário, o discurso será ineficaz a persuadir os potenciais actores a manterem-se longe dos esquemas de manipulação de resultados. Neste sentido existe outro ponto fraco. Em vez de educar os atletas para uma sociedade melhor, através de uma análise pormenorizada à situação de desassossego e ao papel da ética, o discurso preventivo procura assustá-los, ameaçando os atletas com um cruel e doloroso fim de carreira.
De acordo com o módulo educativo da Interpol, usado por diversas instituições que oferecem campanhas de prevenção acerca deste fenómeno, “a partir do momento em que os árbitros/jogadores aceitam a oferta dos manipuladores, ou envolvem-se com eles, os primeiros ficam indefesos e completamente sob controlo dos segundos”… Então, “uma vez que cedas, ficas sob o seu controlo”. Assim, de acordo com esta narrativa, se fores um atleta e te envolveres com um manipulador, tornas-te escravo dos manipuladores. Se houver qualquer informação fiável que contradiga a premissa do discurso, então a narrativa automaticamente perde a sua credibilidade. Este é o problema de usar a lógica do medo para mobilizar os destinatários. Existem muitos exemplos que demonstram que esta narrativa não é verdadeira ou, pelo menos, não totalmente.
Como disse Adrian Colunga, jogador do clube espanhol Getafe, “a manipulação de resultados desportivos existe desde sempre. Qualquer pessoa que diga o contrário está a mentir”. O caso portguês Apito Dourado também contradiz esta narrativa. Nos casos Ibéricos, o imaginário social sobre o “match-fixing” afecta a credibilidade do discurso oficial de prevenção: as conclusões da investigação sobre a manipuçação de resultados desenvolvida em Espanha e Portugal, as denúncias frequentes sobre a mesma e o informador-chave que foi entrevistado nunca mencionaram ocorrências de violência, ameaças ou ataques físicos por parte de manipuladores. De facto, apesar das suspeitas e provas de “match-fixing” em Futebol nestes países, não existem evidências ou denúncias de alguém que tenha ficado incapacitado, magoado ou mesmo que tenha sido morto por ter estado envolvido em esquemas de resultados combinados.
Então, quais são as consequências de negar a realidade e de criar narrativas fictícias? Quando a realidade embate nestas narrativas fictícias, surgem estruturas de oportunidade para as desligtimar. Este foi o caso, por exemplo, do “FIFAgate”. A Interpol teve de entrar em cena para se “divorciar” do seu parceiro na luta contra a corrupção e o “match-fixing”. Alguns títulos irónicos dos media mostram este processo de deslegitimação: “How Interpol got into bed with FIFA” e “Interpol suspends $22M FIFA partnership during corruption crisis”. Devido a este tipo de negligência, agora estamos a investigar a tolerância à corrupção. Corrupção e arranjos – ou seja, combinações de resultados promovidos dentro da esfera desportiva – já acontecem há muito tempo. Mas, actualmente, a gasolina dos mercados de apostas internacionais tem sido jorrada sobre estas pequenas fogueiras. Assim sendo, temos um dilema interessante. Onde devemos focar a prevenção e como devemos tentar perceber o fenómeno: nas pequenas fogueiras, na gasolina, ou em ambos? Será o problema principal a gasolina ou a existência prévia das pequenas fogueiras, que criaram estruturas de oportunidade para a corrupção? Sem “fogo”, a gasolina, o álcool e todos os outros combustíveis não são perigosos.
Então, o que há a fazer? Como podemos criar um discurso de prevenção que seja responsável, credível e eficaz? Não devemos recear a realidade e necessitamos de apresentar uma abordagem holística. Não podemos combater a manipulação de resultados sem considerarmos a conjuntura institucional corrompida, a realidade económica do desporto, a injustiça e as desigualdades dentro das competições desportivas, e os grandes negócios que o “match-fixing” criou.
Marcelo Moriconi
Projeto AMATT – Anti Match-Fixing Top Training
Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL)
Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)