Vistos Gold, do Chipre a Portugal
Vistos Gold, outra vez? Sim, infelizmente temos que falar novamente dos Vistos Gold e dos seus perigos. Temos que chamar a atenção para uma investigação do canal de televisão Al Jazeera, que se tornou um escândalo lá fora e que em Portugal não foi digna de uma única notícia – os Cyprus Papers.
De acordo com os documentos revelados, fugitivos, criminosos condenados por fraude e branqueamento de capitais e políticos acusados de corrupção estão entre dezenas de pessoas de mais de 70 países que compraram os chamados “passaportes dourados” do Chipre.
Entre eles, um cidadão ucraniano investigado por corrupção que, com passaporte cipriota, pode escapar à alçada da justiça ucraniana. Ou o antigo diretor da gigante estatal russa de energia Gazprom, que já estava na lista de procurados da Rússia por abuso de poder, viu o seu passaporte cipriota aprovado em 2019 e que, até agora, conseguiu escapar a todas as tentativas de extraditá-lo. Ou um empresário chinês que também recebeu um passaporte cipriota, apesar de ter cumprido pena de prisão por fraude.
Portugal não é o Chipre. Ou será que é?
Importa clarificar que o Chipre tem em vigor dois tipos de programas, a residência por investimento e a cidadania por investimento (por 2,5 milhões de euros), ao passo que Portugal apenas confere residência (por 250 mil euros). À primeira vista, poder-se-ia dizer que Portugal não é Chipre. Mas será mesmo assim?
Na realidade, Portugal pode muito bem ser o Chipre. Senão vejamos: em 2018, uma portaria do governo criou uma nova autoestrada para estes indivíduos, facilitando a burocracia aos detentores de Vistos Gold que queiram adquirir a cidadania portuguesa. O impacto foi tão grande que as consultoras que intermediam o processo entre os clientes e as autoridades portuguesas começaram a publicitar a cidadania e não apenas a residência, como se pode verificar aqui, aqui ou aqui. Além disso, o Chipre é o segundo país da União Europeia que mais ganhou até 2018 com este tipo de investimento; Portugal o terceiro.
Apesar das sucessivas revisões e mudanças nos seus programas, ambos os países não têm em consideração a origem do capital/dinheiro do candidato na análise da candidatura. No Chipre, há um limite anual de 700 passaportes dourados; em Portugal, não se sabe quantos indivíduos já adquiriram cidadania desta forma, mas só em 2019 foram concedidos mais de 1.200 vistos. De resto, o programa português parece ser tão melhor que o cipriota que, em 2019, foi concedido um Visto Gold português a um cidadão do Chipre!
O pretexto do COVID-19 para facilitar o que já é fácil
A rede da Transparência Internacional, na qual nos incluímos, juntamente com a Global Witness, tem alertado sucessivamente as instâncias europeias e nacionais para os perigos que os vistos e os passaportes dourados constituem para todos os países do espaço Schengen. Fuga ao fisco, facilidade em branquear capitais, livre circulação dentro e fora do espaço Schengen por parte de criminosos procurados, incluindo terroristas e traficantes, colocação de ativos de origem ilícita em espaço seguro e num sistema bancário credível: são inúmeras as vantagens para criminosos.
Desvantagens para Portugal e a Europa? Insegurança em termos de criminalidade organizada e terrorismo, dependência de investimento inseguro e volátil, descredibilização do sistema financeiro, bolhas imobiliárias, entre outros. Nas instituições europeias, há muito que se percebeu que algo terá que ser feito em relação a estes programas que, sendo nacionais, vendem o que são “bens comunitários” – acesso ao Espaço Schengen e ao sistema financeiro do Euro.
Apesar disto, a indústria de facilitadores de Vistos Gold, uma combinação perigosa de agentes imobiliários com sociedades de advogados, já está a preparar uma ofensiva com o pretexto da crise provocada pelo COVID-19. Defendem já uma facilitação dos procedimentos, já de si muito pouco exigentes, uma vez que não garantem controlos sobre a origem dos fundos ou a veracidade dos cadastros criminais. Entre essas medidas de facilitação está o fim da obrigação do candidato e família se apresentarem presencialmente no SEF. Ou seja, as autoridades portuguesas nem conseguiriam garantir a confirmação da identidade dos indivíduos, podendo assim qualquer criminoso passar com uma identidade falsa, mas limpa.
Olhar para o futuro sem os erros do passado
2020 tem sido um ano duro e prevê-se que a possa piorar. Mas se algum ensinamento podemos tirar destes últimos meses é que o país não pode, nem deve, assentar a sua recuperação num só setor, o imobiliário, especialmente quando este se torna dependente de capitais de origem duvidosa ou assumidamente criminosa.
Os casos BES/GES, Luanda Leaks e tantos outros demonstraram que uma economia assente em investimento originário de corrupção, fraude, evasão fiscal e exploração da vida das pessoas acaba por colapsar. E o preço é inevitavelmente pago pelos contribuintes, através dos resgates financeiros e nacionalizações forçadas. As galinhas dos ovos de ouro costumam ter bombas relógio na barriga. Não tenhamos dúvida que os Vistos Gold ainda nos irão explodir nas mãos, tal como acontece no Chipre.
Uma sugestão de leitura
Para uma visão mais aprofundada sobre como a venda de residência e cidadania está ligada à crescente desigualdade económica e social no mundo, aconselho este artigo do economista Branko Milanovic. Deixo aqui um aperitivo:
“Countries that sell citizenship, from EU members to the small Caribbean nations, do not make a mistake. Nor do their purchasers do. No one expects the new citizens to either live much of their time in their new countries (Chinese and Russians who buy Portuguese citizenship are required to spend one week per year there), nor to participate in its social life. Not even to know the language, much less history. Countries are exchanging an ideal category (citizenship) that provides a set of rights over time against an amount of money now, equal to the net present value of the bundle of these future advantages”.
Por Susana Coroado, Cientista Política e Vice-Presidente da TI-PT