Os tempos da transparência
Na edição mais recente da revista académica Past and Present, a historiadora Vanessa Ogle percorre um mundo opaco e fascinante. Entre La Valletta, Nairobi, Tânger e Zurique, Ogle mostra como o fim dos ciclos imperiais favoreceu uma vasta rede de paraísos fiscais: a história da liquidação de bens de capital, a par de investidores nervosos em busca de paragens estáveis, continuará a ser pouco emocionante, mas tornar-se-á cada vez mais importante. Porque, tal como argumentado pela autora, esta história de opacidade expõe a artificialidade do subdesenvolvimento pós-imperial: a composição destas redes, cada vez mais visíveis e contestadas, também nos mostra como o debate perene acerca das economias extractivas e da corrupção endémica é pouco sério. Basta-nos observar os estudos da Global Financial Integrity, do Fundo Monetário Internacional ou da Tax Justice Network. O estudo de Vanessa Ogle é um acrescento fundamental ao conhecimento de que dispomos sobre a opacidade dos movimentos de capital no momento em que o regime de Bretton Woods conhecia o seu fim e os impérios desapareciam.
Mas este não é o espaço adequado para uma apreciação dos méritos historiográficos de um estudo. O interesse deste tipo de trabalho, para quem se move no mundo do combate à corrupção, reside na candura com que nos demonstra a enormidade do desafio à nossa frente. Sabemos que a corrupção é passível de mitigação, independentemente do que pensemos sobre as suas causas. Mas, como também percebemos, à medida que o conhecimento sobre a organização social da corrupção se acumula, que essa organização social tem um lastro histórico concreto e actores concretos; a corrupção não é um processo social singular ou inerente à condição humana. No caso da infraestrutura financeira que continua a promover o enriquecimento ilícito, o branqueamento de capitais ou o financiamento do terrorismo, o lastro histórico é uma pista determinante na compreensão das redes existentes, dos argumentos em sua defesa e dos modos de combater esses argumentos. Isto conduz-nos à conclusão cândida de que não nos confrontamos apenas com estruturas emergentes e opacas, embora os casos se sucedam. Também nos confrontamos com estruturas históricas e consolidadas através de acção sistemática, colectiva e/ou individual. À medida que estas estruturas se consolidam, tendem a produzir discursos protectores: entre outros, os escândalos BCCI e Angolagate estão, hoje, esquecidos. Em suma, o trabalho de Vanessa Ogle também é um aviso: enquanto o ciclo imperial se fechava, outras – e importantes – estruturas eram criadas ou consolidadas. Hoje, se o cerco às jurisdições sigilosas começa a apertar-se, a vigilância cívica deve intensificar-se.
Em 1956, o Wall Street Journal relatava que Tânger era conhecida, nos meios informados da época, como “o paraíso das quatro liberdades – a liberdade dos impostos, a liberdade para trocar as divisas mundiais, a liberdade das taxas alfandegárias sobre bens em trânsito e a liberdade para constituir [empresas] e operar em segredo”. Quarenta e três anos antes, alguém que viria a ser um dos mais importantes juízes do Supremo Tribunal Federal dos EUA já tinha afirmado que o dever da publicidade, contraposto ao direito à privacidade, mostrava como “a luz do sul é, diz-se, o melhor desinfectante”. Sessenta anos depois, a década dos leaks e dos papers mostra-nos que o caminho é longo.
Por Luís Pais Bernardo, Historiador e Vice-Presidente do Conselho de Jurisdição da TI-PT