Na era digital, o papel dos denunciantes é, mais do que nunca, fundamental, dentro ou fora das organizações

Uma diretiva europeia tem de passar a ser lei em cada um dos Estados-membros da União Europeia. E, por isso, os Estados têm um prazo fixado para garantir a transposição para a legislação nacional: no caso da Diretiva Europeia de Proteção de Denunciantes é até 7 de outubro de 2021.

O processo de transposição impõe que os Estados revejam e adaptem o quadro jurídico nacional de modo a assegurar que ele passa a estar conforme e a aplicar a directiva, no espírito e na letra. A posteriori, a Comissão Europeia pode controlar a conformidade e ordenar correções, se encontrar discrepâncias. Mas para as evitar não se pode dispensar a vigilância cívica, desde cedo, no próprio processo da transposição.

É esse o propósito deste relatório da Transparency International e da Whistleblower International Network.

A proteção de denunciantes tem de ser um dos elementos essenciais de uma Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, como a que o Governo pôs em consulta pública e que agora a Ministra da Justiça anuncia como aprovada, embora sem que tenha sido ainda publicada.

Não sabemos, assim, se a diretiva foi cabalmente levada em conta. Tal como ainda não sabemos como virá a ser transposta, pois a margem para interpretações, distorções ou omissões – mais ou menos perversas – existe sempre.

E muitas vezes essa margem acaba a ser explorada, num sistema em que o Estado cada vez mais se desresponsabiliza, ao sub-contratar o trabalho técnico inerente à transposição a gabinetes de advogados e consultores frequentemente permeáveis a conflitos de interesses ou beneficiários da promiscuidade de “portas giratórias” entre o setor público e o privado, muitos acumulando o trabalho de consultoria com funções de representação parlamentar. Demasiadas vezes são os mesmos consultores, ditos “peritos”, que redigem não apenas os textos da lei, mas também desenham as engenharias jurídicas e financeiras que, explorando as inconsistência e omissões da lei, se destinam a conferir selo de legalidade a operações que constituem, de facto, planeamento fiscal agressivo e abusivo, crimes económicos, corrupção, esquemas de branqueamento de capitais, etc..

Ora o objetivo desta directiva é garantir que as pessoas que denunciam crimes económicos e financeiros, corrupção, práticas contra a saúde pública e outros graves crimes contra a sociedade estão protegidas de qualquer forma de retaliação, perseguição ou discriminação. E garantir que cidadãs e cidadãos que têm conhecimento desses crimes se sentem encorajada/os a cumprir o seu dever cívico, denunciando-os. A proteção dos denunciantes é um mecanismo eficaz, e realmente indispensável na era digital, para a descoberta e prevenção de crimes contra o Estado e a sociedade.

Não é por acaso que têm sido profissionais de gabinetes de consultores, certos advogados e até instituições que organicamente os representam quem mais tem no debate público procurado desvalorizar, limitar e desvirtuar o alcance da Diretiva Europeia de Proteção de Denunciantes. Movendo até verdadeiras campanhas “ad hominem” contra pessoas vistas pela sociedade como denunciantes, procurando dissuadir outras de as emularem, tratando de colar os labéus “pidesco” ou “justicialista” à coragem de quem denuncia graves crimes públicos que se procuram fazer passar como práticas normalizadas. Quantas vezes, e em exercício de perversidade máxima, não os ouvimos invocar os direitos à privacidade e à proteção de dados para procurar deslegitimar denúncias e denunciantes?

Porque denunciantes podem ser todas as pessoas comuns que publicamente expõem ou denunciam irregularidades e crimes de que foram vítimas, de que são co-participantes, de que foram testemunhas ou por algum modo tomaram conhecimento. Que denunciam corrupção, violações à lei, erros judiciários, atentados contra a saúde pública, a segurança coletiva, o ambiente, abusos de autoridade, disposição abusiva de fundos ou de bens coletivos ou públicos, conflitos de interesse, má gestão e má governação, prostituição e tráfico de seres humanos, exploração de crianças, de violência doméstica, de assédio sexual e/ou moral na escola ou no local de trabalho, etc..

Numa sociedade democrática e aberta, a exigência de transparência na governação e administração pública tem de ir de par com a vigilância efectivamente exercida pelos cidadãos e cidadãs. Na era digital, o papel dos denunciantes é, mais do que nunca, fundamental, dentro ou fora das organizações. Defendê-los na praça pública é essencial para garantirmos integridade e eficácia no exercício de funções públicas, em defesa do interesse nacional e europeu. Tal como é vital protegê-los juridicamente, como é propósito desta directiva europeia. Portugal tem de a transpor correctamente e sem perder mais tempo. Daí a oportunidade deste relatório.

Ana Gomes
Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Transparência e Integridade