O julgamento da Operação Fizz, que esta semana começou em Lisboa, é um marco histórico na complexa relação entre Portugal e Angola.
Manuel Vicente, antigo líder da toda-poderosa empresa estatal de petróleo Sonangol e ex-vice-Presidente da Angola é a figura de proa no julgamento de corrupção que começou na segunda-feira, 22 de janeiro. Vicente é acusado de corrupção e branqueamento de capitais, por ter alegadamente pago ao procurador Orlando Figueira 760 mil euros em subornos – e facilitado, além disso, um emprego para o procurador num banco de capitais angolanos –, em troca do arquivamento de investigações judiciais aos seus negócios em Portugal.
A figura de proa, no entanto, é uma figura ausente do julgamento. Manuel Vicente ainda nem foi notificado e é ainda uma incógnita saber se algum dia se sentará no banco dos réus. O coletivo de juízes decidiu na primeira audiência separar a acusação ao ex-vice-Presidente para um julgamento autónomo, de modo a permitir seguir em frente com o processo dos outros acusados, enquanto se resolvem os pedidos da defesa de Vicente para que o seu caso seja julgado em Angola. Até agora, as autoridades judiciais angolanas recusaram os pedidos do Ministério Público português para notificar Manuel Vicente das acusações contra si. Caso se mantenha esta recusa em colaborar com o tribunal português, é possível que Manuel Vicente seja declarado contumaz e um mandado de captura internacional seja emitido contra ele, para que possa ser detido e presente ao tribunal.
Isto se, entretanto, não for decidida a entrega do processo para julgamento nos tribunais de Angola. A defesa de Manuel Vicente – com amplo apoio político do Governo angolano – defendem a transferência do processo para o país de origem de Manuel Vicente, ao abrigo dos acordos de cooperação judiciária internacional. Isto apesar de a Procuradoria-Geral da República de Angola ter dito ao Ministério Público português que, caso o processo fosse transferido, Vicente nunca seria julgado, por estar protegido por uma lei de imunidade, enquanto ex-vice-Presidente, e abrangido por uma lei de amnistia que se aplica aos crimes de que é acusado.
O caso tornou-se o centro das relações entre Portugal e Angola. Face à expressa falta de capacidade, ou de vontade, da justiça angolana em julgar Manuel Vicente, o Ministério Público e o tribunal recusaram o pedido da defesa para a transferência do processo, reconhecendo que a inexistência de julgamento, por imunidade ou amnistia, não seria no interesse da justiça. O Presidente angolano, João Lourenço, reagiu à decisão como uma “ofensa” que não pode ser tolerada. Foi o culminar de um conjunto de declarações políticas vindas de Angola que abriam a porta para eventuais represálias contra Portugal no plano político e económico – pressões que parecem não só pretender um desfecho favorável no caso de Manuel Vicente, mas também noutras investigações em curso envolvendo membros da elite angolana, que têm encontrado em Portugal um porto seguro para os seus negócios.
Infelizmente, este tipo de pressão tem sido bem-sucedida no passado. Quando as primeiras notícias de investigações envolvendo Manuel Vicente vieram a público, em 2013, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, pediu desculpas públicas numa entrevista à Rádio Nacional de Angola, assegurando que o inquérito em curso era uma formalidade que não teria quaisquer consequências. O atual Governo tem dito repetidamente que não tem capacidade de intervir no processo judicial, mas reconheceu a Operação Fizz como um “irritante” nas relações entre Portugal e Angola. Quando a ministra da Justiça indicou a sua opinião de que o mandato da procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, não deve ser renovado, isso foi visto por vários comentadores como uma tentativa de aplacar o regime angolano que (tal como vários políticos portugueses) é hostil à independência e eficácia que Marques Vidal imprimiu ao Ministério Público.
Os Governos de Portugal e Angola devem aceitar que um sistema de justiça independente, capacitado e eficaz não é um “irritante” nas relações bilaterais ou uma “ofensa” a exigir represálias, mas uma componente não negociável de um Estado de Direito. Devem abster-se de qualquer interferência ou comentário público sobre uma matéria que está a ser julgada num tribunal de Direito, com todas as garantias de defesa e oportunidades de recurso.
O verdadeiro obstáculo que deve ser ultrapassado nas relações entre Portugal e Angola é a corrupção e a impunidade que têm permitido a altos agentes do Estado angolano trazerem para Portugal dinheiro de origem duvidosa, incluindo para setores de alto risco, como o sistema financeiro e o setor imobiliário. O julgamento que agora começou em Lisboa é uma oportunidade para limpar esta mancha de suspeição e inaugurar uma nova era de justiça e prosperidade partilhada para os povos dos dois países.
Aos políticos exige-se simplesmente que saiam do caminho.