Negacionistas da Corrupção
Recentemente, alguns comentadores manifestaram a irrelevância quer de uma Estratégia Nacional Anti-Corrupção, quer do próprio fenómeno da corrupção em Portugal, quer, ainda, da irrelevância de qualquer estratégia de combate à corrupção. Estão no seu direito, obviamente, mas a perspetiva peca por excesso de ignorância dos mecanismos da corrupção, de deturpação analítica dos dados conhecidos qualitativos, menosprezando-os, e dos quantitativos, deformando-os, e de ingenuidade perigosa, ao limitar o fenómeno entre os “casos” mediáticos, amiúde assente em “notícias” roliças, e a “caça às bruxas”, qual odisseia de guardiões moralistas ou “pessoas de bem”.
Para quem considere que o fenómeno da corrupção – e não apenas o “crime de corrupção” – depende dos “números” conhecidos, dos “dados” recolhidos e das “condenações” judiciais, então recomendo que saia mais de casa, que se candidate a concursos públicos, que forme uma empresa, que crie um negócio e atue com a concorrência, que trabalhe em uma organização e procure dar o exemplo e fazer o que está certo, as estatísticas nacionais, europeias e internacionais, oficiais e não oficiais. Enfim, poder-se-ia percorrer todas as esferas humanas e sociais de atuação, a começar pela própria casa que comprou ou arrendou, passando pela gestão do condomínio ou município em que vive até aos órgãos de poder político e de empresas, das pequenas às multinacionais. Significa isto que, a todo o tempo, há corrupção em todos estes lugares e que todos são corruptos? Se acha que sim, está a cometer o mesmo erro dos visados pelo teor inicial deste texto.
Um problema essencial da discussão sobre a corrupção, e o seu combate, é precisamente reduzi-la à parte visível deste icebergue. Julgar que a luta real e efetiva do combate à corrupção é uma luta de pistoleiros, do tipo one-shot, ou de aventureiros, agora denominados desde ativistas a empreendedores, que criam os seus próprios castelos para justificar as suas atividades, ou a um punhado de euros do Orçamento do Estado ou de percentagem do PIB, é legítimo, mas está na discussão errada, ou na defesa de outro sistema não assente na liberdade, democracia e prosperidade.
Com efeito, é um erro pensar-se que a corrupção obedece meramente a uma conduta individual, que ela não depende dos poderes, instituições, regras, referências e aprendizagens. Tanto quanto reduzi-la à repressão dos “corruptos”, aos dados da sua perceção (que coisa vaga, não credível ou mesmo “acientífica”!), ou pensar-se que ela tanto maior quanto menor for a dimensão dos estados, das cidades ou, já agora, dos condomínios.
A corrupção não é, felizmente, uma prioridade para a satisfação das necessidades fisiológicas ou básicas da população nacional, entendidas como pão, água, oxigénio, segurança, família e repouso, mas é uma ingenuidade pensar que não coloca entraves ao desenvolvimento económico e social do país e empobrece os portugueses, e que em caso algum significa a diferença entre a vida e a morte, a falência e o sucesso; a saúde e a doença; o emprego e o desemprego; um equipamento social ou privado; a quantidade de impostos e a existência ou qualidade dos serviços públicos; possuir uma vantagem competitiva ou perdê-la. Ou, ainda, a realização ou não de um sonho, de um projeto de vida, de uma carreira profissional, de uma solução de negócio, de uma resposta para problemas reais de cidadãos, ou que está ausente em procedimentos, processos, decisões e demais atos na esfera política, pública ou não pública. Ou ainda que, em caso também algum, diminuem, ou mesmo anulam, direitos constitucionais, interesses legais e benefícios legítimos, capacidades de investimento, alocação de recursos, promoção de talentos e competências, individuais e coletivas.
É que, nas questões da corrupção, o essencial é mesmo invisível aos olhos.
Tampouco considerar que a corrupção não é um problema nacional e dos cidadãos, nem das empresas nem para a famigerada competitividade económica e coesão social do país, então, quantas “vidas” valem os entre 8% a 12% do PIB português estimados de impacto da corrupção, coisa pouca por certo estes cerca de 20 mil milhões de euros.
É também por força desta grandeza, à qual deve corresponder tamanha resposta para um problema tão subtil, sisifiano e subversivo.
A crítica das punchlines vale tanto para as banalidades do senso comum como para as excentricidades dos bons costumes. É atrativa e espoleta sensibilidades diversas, mas em face do escrito, será adequado dizer que as estratégias nacionais públicas são importantíssimas, sobretudo para a agenda e atores públicos, sob pena de cairmos ou num apagão democrático ou num barulhento populismo.
Curiosamente, referindo-se aos índices de perceção da corrupção, um dos comentadores dizia esta semana qualquer coisa do género “eu bem sei como eles são feitos!”. Pois, pode ter sido um ato falhado, até porque a expressão infirma justamente o que pretendia defender, mas ele sinaliza os riscos e perigos de generalização e de individualização que até os mais qualificados podem incorrer quando se discute a corrupção.
Numa palavra, desistir do combate à corrupção é perdê-lo. E não precisamos de sair de casa para o saber.
Nuno Cunha Rolo
Vice-presidente da Transparência e Integridade