Por uma solução ponderada, proporcional e de bom senso contra o enriquecimento ilícito

Desde 2012 que apoiamos e nos temos batido por um esforço de criminalização do enriquecimento ilícito, compatível com os princípios constitucionais.

Nos contributos que fornecemos na reunião com o Grupo de Trabalho criado pelo Governo, na dependência direta da Ministra da Justiça, e em sede de consulta pública da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC) – agora denominada Estratégia Nacional Anti-Corrupção (ENAC) –, salientámos a importância da sua regulação; assinalámos o menosprezo a que o Governo votou este tema na ENAC; e, consequentemente, propusemos que se deveria “encetar novamente a criação do crime de enriquecimento ilícito e/ou injustificado, ponderando desde o início questões como o montante e da abrangência”.

Defendemos que esta criminalização é necessária, em face das insuficiências legais e processuais no domínio da Justiça e que é possível compatibilizar com a Constituição da República Portuguesa e os Estados de direito democráticos, até porque outras democracias, mais avançadas, o consagram, como é normativamente obrigatória a sua previsão legal.

Com efeito, o Estado português aderiu à Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, que vigora em Portugal desde o dia 28 de outubro de 2007, e nesta, o artigo 20.º, precisamente sob a epígrafe “Enriquecimento ilícito”, prevê que: “Sem prejuízo da sua Constituição e dos princípios fundamentais do seu sistema jurídico, cada Estado Parte deverá considerar a adoção de medidas legislativas e de outras que se revelem necessárias para classificar como infração penal, quando praticado intencionalmente, o enriquecimento ilícito, isto é, o aumento significativo do património de um agente público para o qual não consegue apresentar uma justificação razoável face ao seu rendimento legítimo”.

Ou seja, de acordo com este normativo, o Estado português tem o dever de estabelecer o enriquecimento ilícito como uma ofensa criminal (não civil, económica, financeira, fiscal ou outra) aplicada a atos intencionais por parte de agentes políticos e públicos e que não consigam justificar, de forma razoável ou credível e legitimar, com base no direito, um aumento significativo de ativos patrimoniais tendo em conta os seus rendimentos declarados.

Depois das propostas legislativas parlamentares fracassadas do passado e dos correspondentes chumbos no Tribunal Constitucional, assentes essencialmente na não salvaguarda da garantia constitucional da presunção de inocência e ónus da prova e violação dos princípios da proporcionalidade e in dubio pro reo, especialmente aplicáveis às restrições de direitos, liberdades e garantias e em matérias probatórias, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) veio recentemente procurar sustentar uma espécie de terceira via.

Em 2020, porquanto a “violação do dever de declaração como crime de desobediência qualificada (…) é um instrumento manifestamente insuficiente” (p. 60), a ASJP lançava a proposta de centrar o debate da criminalização do “enriquecimento incongruente” baseado não na “ilicitude” criminal, antes na “injustificação” criminal, afastando, deste modo, qualquer ilicitude presumida sobre o comportamento do agente político ou público e centrando o fundamento da punição antes na “prova efetiva da violação do dever de sujeição à fiscalização”.

Sobre esta proposta, admitimos a sua viabilidade, mas considerámo-la curta, pois estava limitada ao período “durante o exercício do cargo” e desde que “haja aquisição de património que não tenha sido declarado e justificado” (p. 61). Questionámos, por isso, “e depois do cargo?”

A proposta da ASJP de 2021 foi melhorada e renovada, digamos assim, com uma nova formulação jurídica, mais prudente e de pendor assaz defensivo em face dos riscos de inconstitucionalidade, na qual se incluía já, nas declarações subsequentes, “três anos após o fim do exercício de funções” (p. 11).

A criminalização do enriquecimento ilícito, em geral, e a ocultação de riqueza adquirida, em particular, são contributos relevantes, embora não suficientes, para prevenir e combater a corrupção a nível político e público. Serão, com certeza, contributos, mas muito dependerá dos debates, atores políticos, públicos e privados, e suas interpretações, e conhecimento dos reais e potenciais meios e meandros operados ou operáveis pelos infratores.

Porém, seria bom que, do ponto de vista metodológico, se fizessem, com a maior urgência, estudos breves de direito comparado relativamente às soluções que outros Estados já efetuaram, sobretudo os que subscreveram a Convenção Contra a Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003, e como estão a implementar o citado artigo 20.º. Ainda que sejamos precursores nesta matéria, seria bom mantermo-nos firmes no propósito de prevenir e reprimir esta corrupção de negócios e favores de poder, e consensualizar soluções, a nível parlamentar e ouvida a sociedade civil.

Em conclusão, defendemos a obrigação legal dos titulares de cargos políticos e públicos declararem o respetivo património no início, no fim e depois do mandato, com limitações prudenciais e sem prejuízo da ponderação de interesses e direitos, assim como de princípios, constitucionalmente consagrados.

Defendemos a obrigação de os agentes políticos e públicos abrangidos justificarem a origem de aumentos desproporcionais e não provados, de forma razoável e credível, de ativos patrimoniais, nomeadamente de rendimentos sem base legal ou causa legítima.

Defendemos uma solução ponderada, proporcional e de bom senso, mas eficaz quanto ao seu objetivo e efetiva quanto à sua implementação. Uma solução do tipo “caça às bruxas” é tão má quanto uma solução do tipo “algo deve mudar para que tudo continue como está”, ambas demagógicas e extremistas, ainda que defendidas por autodenominados “moderados”.