A César o que é de César
Tantos anos passados, o legislador e o governo decidem agora regulamentar a prevenção da corrupção no setor privado, o que, sendo positivo, oculta a dúvida fundamental: colocando o ónus do combate à promiscuidade entre a política e os negócios nas empresas, o Estado continuará demitindo-se dessa responsabilidade?
O programa do Governo apresentado esta semana destacou a prevenção da corrupção no setor privado, designadamente através das medidas já inscritas no Regime Geral de Prevenção da Corrupção, que vincula todas as empresas com mais de 50 trabalhadores à adoção de um programa de compliance que inclua, obrigatoriamente, “a elaboração de um plano de prevenção da corrupção, a aprovação de um código de conduta, a disponibilização de um canal de denúncia, a realização de um programa de formação, a designação de um responsável independente pelo cumprimento normativo e a aplicação de sanções para o respetivo incumprimento”.
É, evidentemente, uma boa iniciativa, mas nada tem de inovadora, considerando a experiência de outros países europeus, que há muito que assumiram como desejável e necessário dotar o setor privado de instrumentos normativos capazes de mitigar os efeitos da corrupção e da fraude nas suas economias.
Mais relevante – atendendo até ao destaque que vem sendo dado em Portugal a tal conjunto de medidas – aqui partimos da premissa errada de que a luta contra a corrupção não ecoa nos empresários portugueses. O que não corresponde, sobretudo tendo presente a dimensão do setor, constituído maioritariamente por Pequenas e Médias Empresas e micro empreendedores, que melhor do que ninguém conhecem os entraves causados por conflitos de interesses, nepotismo, suborno ou outras infrações conexas.
É certo que a promiscuidade entre a política e os negócios está na base dos maiores escândalos de corrupção em Portugal, mas há que evitar a ideia de que as empresas beneficiam da corrupção se cristalize, como se tratasse de uma verdade insofismável. De resto, são cada vez mais as evidências documentais traduzindo o impacto negativo da corrupção nas empresas e no ambiente de negócios, assim como os estudos refletindo as perceções de empresários sobre os efeitos perversos da corrupção na sua atividade.
A OCDE – de que Portugal é membro, sobretudo desde a adoção da Convenção Anti-Suborno, em 1997 – tem construído um amplo acervo de recursos demonstrando os benefícios da luta anti-corrupção no setor privado e, no que respeita às perceções, veja-se, por exemplo, o Eurobarómetro Especial Corrupção publicado pela Comissão Europeia em 2020, inequívoco relativamente ao entendimento de que o favoritismo e a corrupção prejudicam a concorrência empresarial em Portugal (87% dos inquiridos) e que no nosso país a única forma de ter sucesso empresarial é ter ligações políticas (68%).
Não se ignora que os mesmos dados revelam que há um número significativo de pessoas que parece acreditar que a corrupção faz parte da cultura empresarial portuguesa, mas importa distinguir a realidade da fatalidade.
Ou seja, até que ponto as relações ainda muito estreitas entre a política e os negócios, designadamente pela muito deficiente gestão dos conflitos de interesses, a falta de fiscalização dos rendimentos e património dos titulares dos cargos políticos e altos cargos públicos, ou a insuficiência crónica de recursos humanos e técnicos ao dispor das autoridades de investigação criminal, vem condicionando a criação de mecanismos robustos anti-corrupção no setor privado?
Em 2008, aprovou-se em Portugal o Regime Penal de Corrupção no Comércio Internacional e no Setor Privado (Lei n.º 20/2008, de 21 de abril) que não só reforçou a aplicação da Convenção Anti-Suborno da OCDE, ratificada em 2000, como instituiu uma moldura penal aplicável às empresas, assumindo a liberdade de iniciativa privada, a livre concorrência e o bom funcionamento dos mercados como bens públicos que urge salvaguardar e proteger, dado o seu impacto direto na competitividade e no desenvolvimento económico.
Ora, tantos anos passados, o legislador e o governo decidem agora regulamentar a prevenção da corrupção no setor privado, o que sendo positivo, oculta a dúvida fundamental: colocando o ónus do combate à promiscuidade entre a política e os negócios nas empresas, o Estado continuará a demitir-se dessa responsabilidade?
Opinião de Karina Carvalho
Diretora Executiva da TI Portugal