A corrupção alimenta conflitos como o que opõe a Rússia à Ucrânia – e o Ocidente tem sido cúmplice

O impensável aconteceu e esta semana a guerra voltou a solo europeu, 80 anos depois do final da Segunda Guerra Mundial. Vladimir Putin decidiu avançar sobre a Ucrânia, sob o pretexto de proteger as populações das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, a quem reconheceu a independência.

A corrupção alimenta conflitos como este a que estamos agora a assistir e a insegurança a nível mundial. As maiores democracias ocidentais facilitaram este conflito, permitindo que cleptocratas russos promovessem os seus interesses um pouco por todo o Ocidente. Um exemplo disso é a denúncia feita, a semana passada, pela Transparency International de uma fundação estatal alemã, controlada pela Gazprom, que apoiava abertamente a construção do Nord Stream 2. A Gazprom é a maior empresa de energia russa e a maior exportadora de gás natural do mundo.

Os cleptocratas escondem a sua riqueza através de empresas anónimas e contam com a cumplicidade dos bancos e facilitadores nos países ocidentais – como advogados, consultores fiscais, agentes imobiliários e até a indústria do futebol –, para movimentarem os fundos a seu bel prazer. É fundamental que os principais estados e economias façam cumprir as regras existentes para acabar com os fluxos de dinheiro que financiam estes oligarcas e, através deles, este ataque à Ucrânia.

2016 foi uma oportunidade perdida. Através dos Panama Papers, vimos como Putin usou várias contas em paraísos fiscais para capturar vários dirigentes europeus. Estes subornos de Putin foram confirmados pelos Paradise Papers (2017) e pelos Pandora Papers (2021).

União Europeia, Estados Unidos e Reino Unido têm agido coordenados na aplicação de sanções sobre a economia e as elites russas, destinadas a colocar pressão sobre Vladimir Putin e o Kremlin. A União Europeia anunciou o segundo pacote de sanções esta madrugada e está já a pensar num terceiro – que incluirá o congelamento dos bens de Vladimir Putin e Serguey Lavrov, seu Ministro dos Negócios Estrangeiros.

Um dos “pilares” identificados por Ursula von der Leyen em que assentam estas sanções é o acesso privilegiado à União Europeia. “Diplomatas e outros altos funcionários e empresários deixarão de ter acesso privilegiado à União Europeia”, declarou a presidente do Conselho Europeia, por volta das 1h30 da madrugada desta sexta-feira.

Revisitar o programa dos Vistos Gold deveria ser uma das primeiras medidas destas novas sanções.

Desde 2012, pelo menos 418 vistos gold foram atribuídos por Portugal a cidadãos russos e apenas 12 foram recusados. Destes, 21 gozam de residência permanente e não sabemos quantos terão já obtido a cidadania portuguesa. A Rússia ocupa quase sempre um lugar no top 5 dos países a cujos cidadãos são atribuídos vistos gold.

Quanto dinheiro sujo de oligarcas russos já terá sido branqueado em Portugal?

 

O Governo português tem apoiado as sanções anunciadas pela União Europeia, mas restam dúvidas. Apesar de o Ministro dos Negócios Estrangeiros ter esclarecido que qualquer indivíduo na lista europeia terá sanções, independentemente do seu estatuto, importa ainda esclarecer: Os pedidos de vistos gold que estão a ser processados vão continuar? O governo vai divulgar os nomes dos indivíduos e a natureza das sanções que impuser em território nacional?

Estas questões juntam-se às que já vimos fazendo nos últimos anos: que controlos são feitos? Como conseguem apurar a origem dos fundos e o perfil de quem se candidata vistos gold?

“Podemos ter um russo que vive num país africano ou numa ex-república soviética e comete um crime onde está a viver e não no sítio onde nasceu”, exemplifica Susana Coroado, presidente da Transparência Internacional Portugal, em conversa com o Expresso. Conclusão: “Tem um registo limpo na Rússia”.

Esta é uma oportunidade renovada e premente para repensar o programa de vistos gold e os riscos que representa​ para a segurança nacional e internacional.

Para já, ficou de fora deste segundo pacote de sanções aquela que é chamada de “opção nuclear”. O corte do acesso à rede SWIFT. O que é o SWIFT? É o sistema global de comunicações bancárias e financeiras que os bancos utilizam para realizar transacções transfronteiriças seguras e rápidas. Processa, diariamente, dezenas de milhões de transações financeiras.

O acesso a este sistema é crucial para que o “modelo de negócio” da cleptocracia de Putin funcione. Putin tem conseguido manter-se à frente de um estado mafioso, durante os últimos vinte anos, porque tem conseguido manter os seus oligarcas felizes: capazes de saquear a Rússia e esconder os seus bens em contas offshore.

Cortar o acesso ao SWIFT seria uma séria ameaça à capacidade dos oligarcas russos de manterem o seu estilo de vida: dos castelos franceses às mansões em Londres e aos chalés nos Alpes suíços, tudo isto requer contas offshore com fundos acedidos via SWIFT. Ora, oligarcas descontentes significariam uma perda de apoio de Putin.

Putin está perfeitamente consciente disto e não terá sido por acaso que se reuniu com muitos deles esta madrugada. Foi também por isso que, durante os últimos anos, trabalhou para garantir que a Rússia não seria excluída do sistema SWIFT. Como? Através dos tais subornos pagos a políticos europeus através de contas offshore, como as denúncias de 2016, 2017 e 2021 revelaram. Este jogo de paciência deu agora frutos: a recusa, por parte da Itália e da Alemanha, de cortar o acesso do país à rede SWIFT.

É, pois, fundamental, prosseguir este esforço concertado para localizar e congelar ativos que possam estar ligados a funcionários russos corruptos, escondidos em contas bancárias em paraísos fiscais ou investidos um pouco por todo o mundo.