É necessário fazer acontecer

 

A proposta de Orçamento do Estado para 2022 em matéria de transparência, ética e combate ao fenómeno corruptivo e afins deixa muito a desejar em termos de ambição, audácia e concretização, considerando que estamos perante um governo de maioria absoluta.

Um governo de maioria absoluta permite não apenas uma maior capacidade de adoção e implementação de políticas públicas; permite também ser mais ambicioso, mais corajoso e mais concreto em matéria de promessas e medidas, ou seja, naquilo que pretende fazer.

Na verdade, e no essencial, não há diferenças entre os programas eleitorais e de Governo, nem entre os dois Orçamentos do Estado – o chumbado e o ora proposto –, ou seja, parece ter pouco ou nenhum significado ou impacto na amplitude e transformação de mudanças na agenda de matérias acima enunciadas.

Encontramos algumas as menções à transparência e ao combate à corrupção, mais propriamente à Estratégia Nacional Anti-Corrupção. No entanto, estas caracterizam-se pelo valor indeterminado, conteúdo promissório e sentido abstrato.

Promete este XXIII Governo uma “comunicação mais clara, transparente e informativa”; “transparência nas relações entre o Estado e as empresas”; “transparência, o reaproveitamento de dados para fins científicos e de geração de conhecimento e o aparecimento de novas fontes e modelos de negócio, tornando a informação mais facilmente acessível às empresas”; “transparência no mercado da informação”; “transparência na gestão das finanças públicas e demais recursos financeiros”; “transparência exigível nos pagamentos efetuados pela Administração Pública”; “transparência e prestação de contas”; “reforçar a transparência e dados abertos”. Contudo, na realidade, não avança medidas determinadas.

Em matéria de transparência e dados abertos, pretende o Governo reforçá-los, i.e., reitera “o seu compromisso em aprofundar o Portal Mais Transparência atualizado com informação relevante e acessível, nomeadamente sobre a execução do PRR”; diz que vai alargar “o leque de informação disponibilizada (…) a outras áreas” no Portal Mais Transparência, além do “acompanhamento da implementação e execução dos vários fundos europeus (incluindo os do PRR)”; “aprofundar o Portal Mais Transparência atualizado com informação relevante e acessível, nomeadamente sobre a execução do PRR”; e incentivar e promover “a disponibilização pelo setor público dos seus dados e documentos”, “com a entrada em vigor da lei que aprova os princípios gerais sobre dados abertos e transpõe para a ordem jurídica interna a diretiva europeia sobre esta matéria”.

O Governo está certo quando refere que, com as medidas mencionadas no parágrafo anterior, “ficam criadas mais condições para melhor informar os cidadãos, desenhar políticas públicas mais eficazes e prestar serviços de qualidade que respondam às necessidades das pessoas”, “com um impacto económico particularmente elevado e promovendo a concorrência e a transparência no mercado da informação”. A questão, todavia, é saber como vai fazer isso, tanto a nível legal quanto gestionário e administrativo. Isto sabendo-se, com base na letra do Programa de Governo aprovado e Orçamento do Estado proposto, o Governo invoca amiúde a “interoperabilidade dos serviços”, “a reutilização dos dados [públicos]”, e o aumento da “transparência e a eficiência da Administração Pública”.

Em especial no domínio da Justiça, tomada esta por antonomásia a área governativa do combate à corrupção, declara o Governo, como sua quarta prioridade, que pretende “robustecer o combate à corrupção, implementando e, designadamente, instalando e pondo em funcionamento o MENAC”, sem esquecer “uma justiça mais transparente e prestadora de contas”, aumentar “a transparência, a comunicação e o reforço da proximidade aos utentes dos serviços de justiça”, e a “disponibilização do sistema de informação de monitorização da Estratégia Nacional Anti-Corrupção”.

Ora, infelizmente, tanto a narrativa oficial está alinhada com a documental, quanto falta saber se a retórica política estará refletida na ação e resultados governativos. Um desalinho das primeiras é, de facto, a pouca ambição e definição das políticas públicas a empreender, indiferente à amplitude das maiorias parlamentares de suporte governativo. Um mau indício das últimas é a indeterminabilidade e incerteza das medidas políticas, i.e., a ausência e indefinição generalizadas da forma e conteúdo de execução da “vontade governamental”.

Em aparente contraponto da documentação governamental, a Senhora Ministra da Justiça, no seu discurso de abertura tardia do ano judicial, parece apontar para a “ação”. Referiu a importância e a necessidade de “fazer acontecer”, destacando os problemas do “conhecimento”, da “comunicação”, da “modernidade”, “acessibilidade”, bem como o “recurso a ferramentas eletrónicas renovadas”, ao ponto de visar a “boa gestão processual”.

A seta parece apontada para o concreto, mas, mais uma vez resta a definição de medidas, seja de “o que fazer?” e “como vai acontecer?”. Esperemos, de facto, que este fazer acontecer esteja alinhado e coerente com os desejos dos portugueses, uma vez que programa e orçamento governativos não os refletem, na ambição e concretitude. E, se assim for, tal como se deseja, então confirmar-se-á o que o Chefe de Estado afirmou, também na sobredita ocasião, de que “os políticos são o espelho do país”.

Por outras palavras, o que se deseja é que os políticos sejam melhores e mais capazes do que o restante “país”. Talvez seja esta a razão do nosso estático atraso – no conhecimento, competência, cultura e mentalidade – particularmente, neste âmbito da agenda da transparência, integridade e anti-corrupção em geral. Não tanto pelo facto de os políticos não refletirem o país, antes, por o espelho tradicionalmente não refletir quem pode e deve ser melhor que o país e assim corresponder à imagem que os portugueses ambicionam para si e os seus.