#FinCENFiles ou o otimismo
Quatrocentos jornalistas em cento e oito redacções. Dois biliões de dólares. Dois mil e cem relatórios. Milhares (ou milhões, ou biliões: depende do pessimismo) de transacções suspeitas. Reguladores desregulados. Bancos transfigurados em legiões financeiras de Pôncios Pilatos. E em Portugal? Em Portugal, falamos das coisas que importam. Salva-se o trabalho de Micael Pereira, um exemplo de serviço público.
Um dos sinais do declínio democrático é a habituação ao escândalo. O Deutsche Bank está, pela enésima vez, envolvido na escandaleira? Só é novidade para os burros. O HSBC ajudou a lavar dinheiro a redes criminosas? Vá lá. Só te admiras porque és um ingénuo. O BES Miami facilitou a fuga de capitais venezuelanos, promovendo a saúde e bem-estar dos boligarcas? Lá estás tu com o moralismo do costume. O EuroBIC tem o nome lá enfiado? Que chato, pá. Já tivemos os Panama Papers, os Lux Leaks, o Luanda Leaks, Laundromat e os Cum-Ex Files. Relaxa. Está tudo bem. Vai ficar tudo bem. Come uma peça de fruta, que isso passa. E quem és tu para considerar este tópico mais importante que a última trend no Twitter? Em Portugal, falamos das coisas que importam.
É verdade. Considerar este tópico mais importante que outros é um juízo de valor. Mas é um juízo de valor que pode ser quantificado. Dois biliões de dólares é muita massa. Se tivermos em conta que a FinCEN, de onde surgiu a documentação usada para construir dezenas de reportagens, recebeu dois milhões e setecentos mil relatórios em 2019, percebemos que nem estamos a falar da ponta do icebergue. Estamos a falar de um cubo de gelo quase derretido. Mas, em Portugal, falamos das coisas que importam.
Se quisermos falar disto sem pudores estúpidos, podemos dizer três coisas.
Primeiro: enquanto existirem paraísos fiscais, não há justiça económica intranacional ou internacional. O debate em torno do IRS plano é supérfluo. Ontem, 24 de Setembro, o painel da ONU para a Responsabilidade, Transparência e Integridade Financeiras (FACTI) lançou um relatório intercalar (seremos brindados com o relatório final em 2021) que nos diz isto: todos os anos, a prática da transferência de lucros retira 500 mil milhões de dólares à base tributável pelos Estados; 7 biliões de dólares em riqueza privada são mantidos em paraísos fiscais – quase 10% do PIB global está em arquipélagos financeiros; 1,6 biliões são lavados com brancura certificada.
Se tivermos em conta que a UNCTAD estima as necessidades de financiamento dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável em 2,5 biliões de dólares anuais nos países em desenvolvimento, começamos a perceber o que se passa. Se tivermos em conta que as grandes auditoras/consultoras/assessoras têm, de acordo com o CORPnet da Universidade de Amesterdão, uma presença anormalmente forte em paraísos fiscais, começamos a perceber o que se passa. Temos uma indústria de defesa da riqueza a carburar com força. E a contar com a nossa desatenção. Entre auditorias cujos conteúdos são sonegados e outros episódios da vida banqueira à portuguesa, provinciana e bafienta, estamos assim.
Segundo, Oliver Bullough tem razão. Se não conhecem este nome, pesquisem-no. Façam como alguns do bancos identificados pelos FinCEN Files quando querem verificar os seus clientes (subscrever uma base de dados ou exigir um código LEI é demasiado rigoroso, pelos vistos): googlem-no. Bullough diz algo extremamente simples: é fácil culpar os bancos. E não está incorrecto. Mas a responsabilidade efectiva é das redes de decisores políticos que, ao longo de gerações, transferiram a responsabilidade da vigilância financeira para os mesmos bancos que lucram com as transacções.
A responsabilidade efectiva é das redes de decisores políticos que não garantem remunerações apropriadas e recursos adequados às unidades técnicas que devem processar milhões de relatórios e levantar processos. Sabem quantas pessoas tem a unidade do Banco de Portugal que supervisiona o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo? Sabem quantos inspectores trabalham na Unidade de Informação Financeira da PJ? Não? Estão como eu. Mas não precisamos de saber quantos são para saber que são poucos. E para saber que a UIF faz parte do Egmont Group, a que a FinCEN também pertence.
Terceiro, chegámos a um momento em que já não podemos tapar o sol com a peneira. A economia secreta dos paraísos e condutas fiscais tornou a corrupção, a evasão/elisão fiscal e a alta criminalidade organizada funcionalmente equivalentes em termos de prevenção.
Não é preciso pensarmos muito para chegarmos a esta conclusão: os capitais ligeiramente batoteiros circulam pelos mesmos canais que os capitais sujos. Isto mostra soluções fáceis como as ridículas listas negras da União Europeia e da OCDE como aquilo que são: rebuçados para papalvos. E são rebuçados para papalvos porque, como explica Yakov Feygin, a “prevenção fiscal agressiva” e a “otimização fiscal” são componentes fundamentais da infraestrutura financeira da corrupção.
Nada disto é novo. Leiam esta thread de Anthea Lawson. Há 11 anos, Lawson redigiu um relatório para a Global Witness. A conclusão é simples. Compliance e due diligence são histórias da carochinha. O tempo da conversa mole acabou: os FinCEN Files não mostram os defeitos do sistema financeiro contemporâneo. Mostram as suas características.
Quando ouvirem mais lengalengas sobre amnistias fiscais e competição tributária, lembrem-se da investigação do ICIJ. Quando ouvirem mais conversa fiada sobre auditorias atrasadas ou auditoras que auditam entidades assessoradas por elas, pensem no CORPnet. Quando ouvirem mais histórias da carochinha sobre corrupção endémica no Sul Global, lembrem-se dos números FACTI. Ou não. Podemos continuar a falar das coisas que importam.
Por Luís Pais Bernardo, Historiador e Vice-Presidente do Conselho de Jurisdição da TI-PT