Lei dos titulares políticos devia chamar-se regime de ocultação

Até à aprovação da Lei 52/2019, na anterior legislatura pela Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas, os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos tinham de apresentar três declarações diferentes:

  1. Registo de interesses, publicado no site do Parlamento;
  2. Declaração de património e rendimentos, depositada no Tribunal Constitucional; e
  3. Declaração de honra em como não tem quaisquer incompatibilidades para o exercício do cargo, à guarda do Tribunal Constitucional ou da Procuradoria-Geral da República, consoante se se tratasse de um titular de cargo político ou de alto cargo público.

O registo de interesses estava online no site do Parlamento; a declaração de património e rendimentos tinha de ser consultada presencialmente no edifício do Tribunal Constitucional; e as declarações de incompatibilidades ficavam arquivadas naquele tribunal ou na Procuradoria-Geral da República.

A nova lei 52/2019 veio fundir estas três declarações numa só, que ficará depositada na nova Entidade da Transparência, que ainda não foi formalmente criada (está na lei, mas ainda não saiu do papel) e que criou regras novas de publicitação. A parte da declaração que tem a ver com o registo de interesses continuará publicada e acessível online no site da referida Entidade da Transparência e no site da instituição onde o titular de cargo político exerce funções, seja no Parlamento, no Governo, numa Câmara Municipal, etc..

No entanto, parte da declaração que se refere ao património e rendimentos vai continuar vedada, na medida em que vai continuar a ser necessário ir fisicamente à Entidade da Transparência para poder consultá-la. Também será possível aceder à declaração online, através de certidão digital de acesso, temporária e limitada à declaração ou declarações a que se pediu para ter acesso. Para tal, é preciso fazer o pedido, justificando.

No regime anterior era necessário ir presencialmente ao Tribunal Constitucional para consultar a declaração. Imagina só o que era para um cidadão das regiões autónomas ou qualquer região fora de Lisboa ter de dirigir-se à capital para consultar a declaração do seu presidente de câmara. Antes de 2019, era possível ter acesso e consultar os dados todos, ainda que apenas presencialmente. Agora, a lei restringe a consulta de parte vital da informação.

Ou seja, anteriormente, a quem ia ao Tribunal Constitucional mostravam a declaração original. Agora, segundo os jornalistas da Sábado, mesmo presencialmente, os serviços mostram uma cópia rasurada.

O problema é que, além da informação que a Lei 52/2019 oculta, o Tribunal Constitucional pode estar a ir mais longe do que a própria lei. Eliminar o nome do escritório de advogados onde alguém trabalhou não nos parece que tenha alguma coisa a ver com o sigilo profissional ou com a proteção de dados pessoais. É um abuso.

“Dados sensíveis como moradas, matrículas de automóveis, naturalmente implicam riscos para o titular ou a família, faz sentido estarem ocultos. Agora, o nome das empresas onde a pessoa trabalhou ou informações sobre ativos e passivos financeiros de um político? Interessam (e muito)”, defende Susana Coroado, presidente da Transparência e Integridade, em declarações à revista Sábado desta semana (edição física, p. 17).

“É um enorme passo atrás e inverte completamente o espírito da própria lei”, continua Susana Coroado,na medida em que jornalistas e cidadãos precisam de ter acesso a este tipo de informação para poderem fazer o devido escrutínio do poder político: “Já percebemos que o poder político não faz qualquer tipo de controlo. E, se o faz, é um controlo burocrático”.

“Esta lei devia chamar-se regime de ocultação”, remata a presidente da Transparência e Integridade.

Ocultar informação desta natureza é um retrocesso na transparência e o Tribunal Constitucional está a fazer uma interpretação abusiva da lei para restringir ainda mais o acesso, mais ainda do que a própria lei já restringe.