Fundos capturados, fundos desperdiçados
Foi noticiado esta semana que a empresa de Mário Ferreira, a Pluris Investments, vai receber do Banco de Fomento 52% dos 76,7 milhões de euros de apoio à capitalização das empresas afetadas pela pandemia. Apesar de o empresário garantir que os 40 milhões que receberá se destinam à Mystic Cruises, empresa de navios turísticos, os fundos de apoio serão creditados à Pluris, sociedade anónima sediada em Malta que também detém a Media Capital, dona da TVI.
A atribuição deste apoio financeiro tem sido encarada com surpresa e tudo está por explicar, por vários motivos.
Primeiro, pelo acima descrito, ou seja, o crédito feito à Pluris e não diretamente à empresa de cruzeiros. Segundo, pelo volume do empréstimo, tanto em termos absolutos, como relativos. Por um lado, havia um limite de financiamento de 10 milhões de euros por projeto, embora se admitissem situações excecionais. Por outro lado, porque o empréstimo corresponde a mais de metade do bolo a distribuir. A isto junta-se o risco associado às empresas de Mário Ferreira. Ainda que não tenha sido sequer oficialmente acusado, o empresário está sob investigação das autoridades portuguesas e europeias por suspeitas de fraude fiscal e branqueamento de capitais. Um dos critérios de elegibilidade ao apoio é precisamente “terem a situação contributiva regularizada perante a Administração Fiscal.”
Desde o anúncio da chegada da bazuca de fundos europeus que a Transparência Internacional Portugal tem vindo a alertar para os riscos de corrupção, fraude e captura dos fundos. A preocupação com o desvio e a fraude relacionada com fundos europeus não foi apenas nossa. Pelo contrário, há muito tempo que um tema não acionava tantos alarmes ou levantava tanto clamor por parte da sociedade civil, empresários e classe política, incluindo o Presidente da República. Muitos têm ainda na memória as histórias de fraude, os rumores sobre os carros de luxo comprados e as cozinhas renovadas com dinheiro europeu, da Tecnoforma ou da UGT e o Fundo Social Europeu.
A Transparência Internacional Portugal já alertou – aqui e aqui, por exemplo –, porém, que este debate olha demasiado para o que foi o historial dos fundos e pouco para o que são hoje os riscos e as práticas. Por outras palavras, o foco está muito na pequena fraude feita pelos empresários depois de os apoios terem sido transferidos. Mas, com o debate e os instrumentos de controlo focados neste tipo de fraudes, esquece-se tudo o resto, ou seja, o que acontece a montante, como tão bem explica este estudo da OCDE, que devia ser livro de cabeceira de muitos responsáveis em Portugal.
Quando ocorrem esses riscos? Em primeiro lugar, na definição do plano estratégico de aplicação dos fundos. A menos que sejamos um António Costa e Silva, que acredita que tudo é estratégico e tudo pode ser alvo de investimento no país, desenhar um plano de investimento de longo prazo para um país implica fazer escolhas e privilegiar determinadas áreas ou setores de atividade em detrimento de outras. Estas escolhas podem ser feitas visando o interesse público ou visando interesses políticos e económicos particulares.
Um outro momento de risco é na escolha dos projetos que são financiados. Podem desenhar-se ou interpretar critérios à medida, de forma que encaixem em determinadas candidaturas. Ou podem mesmo ignorar-se esses critérios e procedimentos, fazendo confiança de que ninguém faça perguntas. O que se pode seguir na aplicação e utilização dos fundos por esses projetos/empresas até pode ser corretíssimo do ponto de vista formal, sem desvios nem irregularidades à mistura. Mas terá havido favoritismo. Alguém beneficiou de financiamento, não porque o seu projeto tivesse mais mérito do que os outros, mas porque obteve informação privilegiada ou porque conseguiu mexer os cordelinhos em determinados níveis de poder. E, quando existe favoritismo em qualquer uma das suas formas – nepotismo, clientelismo ou corrupção pura e dura –, significa que alguém saiu prejudicado.
O Presidente da Estrutura de Missão Recuperar Portugal garantiu, no Parlamento, que vai “monitorizar” os apoios do Banco de Fomento, incluindo à Pluris. Mas pode ser tarde demais, porque a irregularidade poderá ter ocorrido no momento da atribuição e não mais tarde. O bolo não dá para todos e, em caso de captura, ganham os que têm mais poder e perdem os que têm mais mérito, mas poucas ligações privilegiadas.
Como alertámos no ano passado, “há um risco concreto de a bazuca beneficiar empresas mais próximas do poder“.
Opinião de Susana Coroado
Presidente da Transparência Internacional Portugal