Do exotismo da corrupção em Portugal ao plano imoral do governo para gastar a massa toda
A nova proposta de alteração do Código dos Contratos Públicos atualmente em discussão na Assembleia de República, é de uma imoralidade sem precedentes.
Sob a capa da simplificação, flexibilização e aceleração dos procedimentos administrativos de contratação pública escancara a porta ao despesismo, ao favorecimento, ao clientelismo e à captura por parte de interesses privados, deitando por terra não só o compromisso do Governo com a Administração Aberta, mas igualmente todo um universo de política pública anticorrupção. O que é tanto ou mais grave quando o governo – o mesmo governo! – acaba de apresentar e de submeter a consulta pública o seu esboço de Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, onde se pode ler, entre outras, que é preciso proceder a alterações ao quadro legal de contratação pública para tornar os procedimentos mais transparentes e reduzir a corrupção.
Numa altura em que se antecipa a vinda de uma pipa de massa da Europa para contrariarmos os efeitos da pandemia, o sinal dado pelo governo é em tudo contrário ao reforço da transparência e do combate à corrupção na contratação pública.
Três meses antes da apresentação das medidas anticorrupção, o Governo submeteu à aprovação do Parlamento, com caráter prioritário e de urgência, um conjunto de alterações ao CCP e medidas especiais que parecem ter sido desenvolvidas por alguém exterior ao próprio governo, tão desfasadas que estão da lógica e da filosofia subjacente à Estratégia de Combate à Corrupção, para não dizer completamente alheias à génese de formação e de execução dos contratos públicos. De uma assentada, faz-se tábua rasa do respeito dos princípios basilares da Constituição e dos Tratados Europeus.
E porquê? Diz o governo que é preciso simplificar, desburocratizar e flexibilizar a contratação pública para aumentar a eficiência da despesa do Estado e melhorar as condições de acesso a contratos públicos por parte dos operadores económicos. Leia-se: aumentar substancialmente a execução de projetos cofinanciados por fundos europeus e em todas as áreas consideradas prioritárias no quadro do Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) entretanto aprovado. Para tanto, conforme explicitado na página web do PEES, é indispensável agilizar os procedimentos de contratação pública, evitando a paralisação do investimento em resultado de pesadas exigências burocráticas, demoradas impugnações judiciais ou outros constrangimentos legais desproporcionados. Nesta lista de pesadas exigências burocráticas inclui-se o visto prévio do Tribunal de Contas e também, percebe-se agora, todas as restantes regras do CCP que, pelos vistos, têm empatado a boa execução da despesa pública.
O que temos pela frente são alterações apresentadas como inovações desejáveis e necessárias em matéria de concorrência, de transparência e de prevenção da corrupção. Em concreto sobre o combate à corrupção, área em que a Transparência e Integridade é, de facto, especialista, cumpre-nos salientar o absurdo de algumas das propostas do governo, em particular 1) a possibilidade de poderem ser elaborados projetos “à medida” do ou de um dos candidatos pré-selecionados, 2) de se permitirem contratações sem qualquer verificação e fundamentação da necessidade de contratar, do recurso à consulta prévia de, pelo menos 5 concorrentes (ou seja, sem concurso), para valores contratuais até cerca de €5.000.000 para as empreitadas e concessões e, consoante casos, €135.000 ou €209.000 para bens e serviços, e 3) da possibilidade de se utilizarem todos estes critérios para os contratos cofinanciadas por fundos comunitário e no âmbito do PEES, ou seja, para gastar a generalidade dos milhões que virão da UE para mitigar o impacto da crise provocada pela COVID-19.
Lembre-se, a propósito, que a contratação pública de emergência inscrita no combate à pandemia já pressupõe medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus, estando a sua implementação restrita – e bem – aos contratos que, visando responder a situações de emergência imperiosa, têm como objeto, por exemplo, equipamentos de proteção individual ou bens necessários à realização de testes à COVID-19.
Disse o Exmo. Senhor Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, aos deputados presentes na reunião plenária do passado dia 7 de julho (discussão generalidade) que com esta proposta de Lei o governo pretende “tornar a Administração Pública mais ágil e flexível, não descurando o combate à corrupção e a promoção da concorrência”, secundado pelo seu colega de partido, Exmo. Senhor Deputado Carlos Pereira, para quem “se já era verdade que, antes da pandemia, era absolutamente essencial ultrapassar os obstáculos que a contratação pública tem gerado à execução do investimento público, podemos dizer hoje, com segurança, nesta fase difícil que vivemos de crise sanitária, é absolutamente decisivo que se possam ultrapassar esses obstáculos”, esperando que o diploma discutido merecesse o consenso de todas as forças políticas aí presentes, dado que “temos, hoje, uma situação difícil e, em abono da verdade, julgo que todos compreendem e aceitam que não é possível uma recuperação da economia portuguesa sem um bom plano de investimentos a poder ser implementado com a celeridade de que precisamos”.
E sobre tudo o mais, estamos conversados.
Mas voltemos ao esboço de Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, que caminha a passos largos para se tornar uma coisa verdadeiramente exótica. Em especial no que respeita à execução dos fundos comunitários diz-se que se trabalhará para reforço da transparência, da prevenção de situações de fraude, e do acautelar da prestação de contas, sendo que, à falta de tudo o resto, parece ser central neste desígnio a publicitação dos procedimentos contratuais.
Esta prerrogativa, tal como se encontra inscrita pelo governo, é de difícil compreensão em termos jurídicos, mas mais ainda na componente de monitorização cívica. Atualizámos no passado dia 17 o Transparência Hotspot, uma plataforma criada para monitorar os contratos realizados em tempo de pandemia. Sempre que trabalhamos dados de contratação pública, a frustração instala-se, por ser uma atividade muito difícil de concretizar, dada a sua morosidade e a exigência de operacionalizarem uma série de passos manuais porque a extração de dados do Portal Base assim o determina. O Portal gerido pelo Instituto dos Mercados Públicos, Imobiliário e Construção (IMPIC), que reúne informação sobre os contratos públicos celebrados ao abrigo do CCP é reconhecido como um bom exemplo entre os Estados-membros da UE, mas não se traduz em verdadeiro ganho na transparência dos procedimentos de contratação pública porque a informação que devolve é extremamente deficitária. Senão, vejamos: a) há uma percentagem muito significativa de contratos públicos que não são publicados, à revelia do que está consignado na lei e contrário ao que é determinado pelo CCP, sendo que a publicitação é condição de eficácia do respetivo contrato, nomeadamente para efeitos de pagamento; b) os contratos não são abertos por padrão, o que significa que faltam elementos críticos sobre a sua formulação, o seu custo-benefício, ou a sua sustentabilidade; c) não obstante a implementação do Open Contracting Data Standard, continua a não ser possível sem extrair e trabalhar os dados de forma automática, o que impede largamente a sua análise.
Não foi preciso fazer grande investigação para percebermos que um número expressivo de contratos “esquece” de fazer o upload do próprio contrato, a maioria dos contratos não divulga qualquer informação sobre a fase de pré-licitação, e o uso generalizado Ajustes Diretos se justifica amiúde com a simples referência ao artigo do CCP que permite a sua utilização, sem cuidar de explicar as circunstâncias que determinaram a adjudicação por essa via, o que aumenta largamente o nível de desconfiança dos cidadãos e das empresas e cria a perceção de que a corrupção, o favorecimento e o clientelismo são endémicos.
Acresce que, em Portugal, os avisos de contratos públicos publicados em Diário da República anunciam simplesmente a intenção das entidades públicas em adquirir um determinado bem, serviço, ou obra de construção, definindo o tipo de procedimento, bem como a plataforma de contratação eletrónica que gere a fase de pré-concurso. O sistema de e-procurement, é apresentado como um avanço significativo, quer em termos de desmaterialização dos procedimentos, quer ao nível da transparência na relação entre o setor público e privado, quer como alavancando a competitividade, mas os contratos públicos continuam ainda muito longe de serem abertos por padrão, mantendo-se o ciclo de contratação pública essencialmente opaco.
É, pois, muito difícil, senão praticamente impossível, ao cidadão comum penetrar no detalhe da despesa do Estado. E com isso todos perdemos.
A Transparência e Integridade vem trabalhando de forma consistente a área da contratação pública ao longo dos últimos 4 anos, em particular no contexto da implementação do Pacto de Integridade (IP) no Mosteiro de Alcobaça. O projeto Integrity Pacts – Civil Control Mechanism for Safeguarding EU Funds, recebeu o European Ombudsman’s Award for Good Administration 2019, foi incluído no Compêndio Especial do G20 como uma boa prática a nível mundial na promoção da integridade e da transparência no desenvolvimento de infraestruturas e foi reconhecido pelo Basel Institute on Governance como uma ferramenta flexível que pode ajudar a tornar as compras públicas mais transparentes e justas e reduzir os riscos de corrupção.
Se tudo correr conforme o planeado, vamos concluir o piloto do primeiro Pacto de Integridade em Portugal daqui a um ano. Confiamos que até lá os principais objetivos do projeto serão cumpridos, mas a nossa esperança de que a experiência do IP possa de facto abrir as portas para uma nova contratação pública, mais aberta, inclusiva e livre de corrupção, parece francamente irrealista. Desde logo porque não encontramos aqui interlocução interessada em apreender as boas práticas do projeto, quando fora de portas somos convocados para partilhar a nossa experiência com inúmeras instituições e organizações, destacando-se as do universo da Comissão Europeia, o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD), a Open Government Partnership e a Open Contracting Partnership.
O que gostaríamos de ter visto proposto era uma verdadeira reforma no setor. Mas preferiu-se ignorar que a falta de agilidade nos procedimentos de contratação pública é diretamente proporcional ao défice de investimento público em capacitação de equipas exclusivamente dedicadas e sistemas de gestão e de informação ajustados ao século XXI, o que traduz uma oportunidade perdida, e é igualmente incompreensível à luz da Estratégia para a Inovação e Modernização do Estado e da Administração Pública 2020-2023 e do Plano de Ação para a Transformação Digital aprovados pelo mesmo governo que agora se sobressalta ante o reconhecimento da incapacidade da Administração Pública em realizar maior e melhor despesa.
E é também por isto que o plano do governo para gastar a pipa de massa que vem da Europa é péssima política pública. Não é estratégico, não resolve problemas estruturais, e não converge senão para deturpar os mecanismos de controlo e de prestação de contas sobre os negócios públicos, e aumentando exponencialmente os riscos de corrupção, com graves consequências para a sustentabilidade do país e o futuro das gerações futuras.
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Karina Carvalho (Diretora Executiva da TI-PT), Miguel Lucas Pires, (Jurista, Professor Auxiliar da Universidade de Aveiro, especialista em Gestão Pública e Compras Públicas e Contratação) e Luís Pais Bernardo (Especialista em Dados Abertos de Contratação Pública)
Texto publicado no Jornal Público, 30 de Setembro de 2020