Conflitos de interesses: uma regulação inconsequente
Os poucos avanços que tivemos nos últimos anos em termos de legislação reduzem-se, no essencial, ao regime de ofertas a governantes e deputados e a introdução de códigos de conduta, os quais, no caso dos deputados, se limita às ofertas, e, no caso do governo, se tem revelado letra morta.
Notícias vindas a público esta semana dão nota que empresas detidas pelo marido da ministra da Coesão Territorial beneficiaram de apoios comunitários atribuídos por entidades tuteladas por Ana Abrunhosa, instalando-se, legitimamente, a discussão sobre a eventualidade de conflitos de interesses.
As mesmas notícias referem que o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República já se pronunciou sobre o tema, tendo concluído que não se verifica qualquer ilegalidade, mas criticando a “obscuridade” da lei. Não conhecemos o teor o parecer, e por isso a TI Portugal endereçou hoje mesmo uma carta à PGR requerendo que lhe seja facultado.
Convinha que todos os pareceres da PGR fossem disponibilizados para consulta pública. Este em particular não se encontra e disponível no site do Ministério Público, e, portanto, não nos é possível aferir ou comentar o seu conteúdo.
Assim, detenhamo-nos exclusivamente no que é público: o marido de titular de cargo público beneficia de fundos públicos tutelados pela esposa.
Mesmo que não haja um problema de ilegalidade, este caso suscita um problema de confiança política no exercício de poderes da ministra. Quer se queira, quer não, Ana Abrunhosa tem responsabilidades governativas na pasta dos fundos europeus, apesar de as matérias relativas às CCDR estarem delegadas, segundo foi dito, no secretário de estado.
Não se trata aqui de fazer uma avaliação pessoal ou personalizada da Ministra. Aliás, é exatamente aí que reside a questão de fundo: o facto de não existir uma clara e forte regulação de conflitos de interesses, e adequada a uma democracia e sociedade avançadas, faz com que se multipliquem julgamentos de caráter em praça pública. Pelo contrário, se a regulação fosse clara e robusta, não haveria caso, nem teríamos de assistir ao espetáculo deprimente de uma ministra em comoção ante os parlamentares por razões estritamente pessoais.
De acordo com a base de dados do European Public Accountability Mechanisms (EuroPAM), e em termos comparados, Portugal está muito mal posicionado relativamente aos demais países europeus em matéria de controlo de conflitos de interesses. Por exemplo, numa escala de 0 (sem escrutínio) a 100 (muito escrutinado), Portugal tem 21 pontos, ao nível da Grécia (com 22), ao passo que Espanha tem 29, Itália 39 e França 37, já para não falar quando comparado com a Eslovénia com 81 e da Lituânia com 75 pontos.
No que toca à robustez do sistema de regulação da ética parlamentar, Portugal também se encontra na segunda metade da tabela, em comparação com os seus colegas europeus, como conclui um recente artigo científico.
Existem regras e entidades de supervisão, nomeadamente a Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados, mas com alcance limitado e sem sanções aplicáveis, o que mereceu crítica por parte da última ronda de avaliação do GRECO sobre os riscos de corrupção nos deputados, fazendo notar quer a falta de mecanismos de controlo, quer a recusa de ação do Parlamento.
É bom sinal que o governo já tenha vindo dizer que está disponível para aprimorar a lei, restringindo a norma que permite aos familiares próximos receberem fundos comunitários, mas tal será manifestamente insuficiente. Desde logo porque há várias necessidades que a regulação portuguesa de conflitos de interesses suscita.
Em primeiro lugar, o facto de a legislação estar dispersa por várias leis. Deveria avaliar-se se não seria mais positivo, claro e eficaz, existir uma única lei de conflitos de interesses devidamente sistematizada, estabelecendo as regras para todos aqueles que exercem poderes e cargos políticos e públicos.
Em segundo lugar, é preciso mudar a abordagem negativa prevalecente da regulação desta matéria, cujo sistema é baseado essencialmente em interdições de acesso a cargos e funções (incompatibilidades, impedimentos, proibições de acumulação), o que tende a criar muitas barreiras à entrada, sem existir, porém, continuação ou consequência no escrutínio, ou seja., uma vez no cargo não há o mínimo de controlo e, dir-se-á, mais difícil é sair.
Deve notar-se a propósito que nem todos os conflitos de interesse são permanentes ou duradouros (como as incompatibilidades): podem ser pontuais, ou surgirem após o início do mandato, e podem ter consequências ou influências ilegítimas nos processos de decisão, tornando estes menos imparciais e transparentes, pois a esfera de influência e de poder que os titulares de cargos políticos e públicos, por definição, possuem, não desaparece, por exemplo, quando delegam as suas competências.
No nosso país existe uma cultura fraca de autorregulação, uma forte visão legalista, por vezes abusiva, dos interesses em conflito. E, também, uma falta de controlo, formação e consciencialização, e hábito de consulta a entidades de supervisão sobre conflitos de interesses.
Claro que há leituras políticas e partidárias dos conflitos de interesses que devem ser identificadas e separadas. Mas a leitura de um governante deve ser sempre legal e ética, avaliando se há um impacto ou efeito prejudicial do conflito na sua esfera de poder e de influência razoavelmente justificado. Ainda para mais em uma cultura hierarquista, venial e temerária perante o poder como é habitual ver entre nós, e quando, infelizmente, o teor e sentido das decisões dependem, não raras vezes, de quem são os respetivos destinatários.
Em terceiro lugar, é fundamental que a regulação seja não apenas detalhada, mas de igual modo consequente e eficaz. O que impõe à autoridade de controlo que seja verdadeiramente independente, com competências de largo alcance e possua os recursos necessários para perseguir a sua missão.
Em quarto lugar, a legislação deve ser preventiva e repressiva, ou seja, se contemplem sanções efetivas, de várias naturezas. Por exemplo, poderiam incluir a mera advertência ou censura pública e a suspensão de alguns benefícios no cargo, sem implicar necessariamente a demissão, para assim alargar o espectro da prevenção e da repressão sem, como habitualmente, a gestão dos conflitos de interesses dos titulares dos cargos públicos ser capturada pela esfera dos interesses político-partidários.
Os poucos avanços que tivemos nos últimos anos em termos de legislação reduzem-se, no essencial, ao regime de ofertas a governantes e deputados e a introdução de códigos de conduta, os quais, no caso dos deputados, se limita às ofertas, e, no caso do governo, se tem revelado letra morta.
Opinião de Nuno Cunha Rolo, Presidente da TI Portugal