Opinião de Luís Pais Bernardo
O plenário da Assembleia da República voltou a discutir a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito à aquisição de material de saúde em contexto pandémico, já depois de o Parlamento ter aprovado duas propostas (uma do CDS, outra do PS). Tendo em conta o trabalho efetuado pela Transparência e Integridade em torno da monitorização das compras públicas em contexto pandémico, vale a pena reflectir acerca do significado mais amplo do ajuste directo, particularmente num contexto em que a componente estratégica da contratação pública assumirá uma importância crescente. Isto sugere-me alguns apontamentos interrogativos.
1. A diabolização dos ajustes directos é um modo fácil de escapar à questão mais importante: por que razão (ou razões) esse procedimento é tão frequente? A resposta simplista centra-se na corrupção. Como em quase tudo o que diz respeito à corrupção, as respostas simplistas são trapaceiras. Em geral, quem quer vigiar e punir observa um silêncio comprometido com a sua participação na criação de condições e processos que conduzem às práticas a vigiar e punir. Os que estão realmente interessados em promover transparência e integridade, começariam por perguntar o que conduz tantas entidades públicas ao ajuste directo. Mais uma vez, a resposta simplista incide na corrupção. É a estrutura de incentivos, dizem. É a preguiça, insinuam. É a excessiva segurança do posto de trabalho, escrevem. Dizem, insinuam e escrevem, mas não querem resolver o problema. Compilam centenas de páginas com exemplos descontextualizados e elegem o perímetro público como o nec plus ultra da corrupção. O desporto de nicho, aqui, é a caça ao ajuste directo com cheiro a trapaça. Querem usar o tópico como arma para avançar uma solução que reforçará o problema. Nada de novo. A oeste, nada de novo. Do lado panglossiano, tudo está bem porque sempre foi assim e a digitalização da contratação pública veio acabar com os atritos da regulação. Informação perfeita para actores perfeitos; vigilância punitiva para actores imperfeitos. E a fábula fica por aí. As notas de rodapé? O Ministério Público resolve-as.
2. Uma das respostas incide na inexistência de planeamento e na estrutura disforme do perímetro público, arremessado contra as paredes mediáticas em tempos de crise e afogado nas águas da sua irrelevância em tempos de crise menor. O ajuste directo procura resolver problemas urgentes. E resolve-os. Quando temos um problema que requer resolução, procuramos resolvê-lo. E, se não sabemos o que significa resolver adequadamente um problema, a melhor métrica é a sua desaparição. Mas há quem não perceba a diferença entre risco e incerteza. É conveniente. A gigantesca maioria dos trabalhadores em funções públicas com os quais tenho contactado percebe-a na pele, mesmo que não consiga formulá-la explicitamente. Porque a reacção óbvia à incerteza é a hesitação e a mesma reacção ao risco é o cálculo probabilístico. Esta distinção não é semântica: transformar a incerteza em risco é uma das condições e objectivos do planeamento. Mas só planeia quem tem recursos cognitivos e memória organizacional. Desse ponto de vista, a contratação pública, em Portugal, é um reflexo fiel da desarticulação social em curso.
Outra resposta relevante tem a ver com o recurso bizarro a mecanismos de mercado para a produção e provisão de bens públicos. Podemos dar dois exemplos: o recurso excessivo a firmas de advocacia e consultoras em contabilidade. Não fazemos perguntas difíceis a este respeito: o conformismo lógico é um poderoso mecanismo de controlo social. Pela minha parte, confesso ignorâncias múltiplas. Confesso não conhecer as propostas dos partidos acerca do reforço orçamental urgente do INA e da AMA. Confesso não conhecer as propostas dos partidos acerca da criação de centros de competências com capacidade orçamental para operar em todo o espectro da actividade pública. Confesso não conhecer as propostas dos partidos acerca de mecanismos de participação democrática na contratação pública. Há quem fale do Estado-multibanco. Eu falo do Estado-autófago. E a autofagia não se resolve em Comissões Parlamentares de Inquérito.
3. Há muitas maneiras de encarar e enfrentar o problema. Em primeiro lugar, urge ter uma percepção correcta acerca do mesmo. Não a temos. Embora receba prémios e seja muito elogiado, o único mecanismo de publicitação dos contratos públicos é insuficiente. Uma insistência desajustada no ajuste directo publicado como problema desvia a nossa atenção colectiva de outros problemas mais sérios. A gigantesca maioria dos relatórios de modificação do contrato, de sumário anual e execução não se encontra publicada. A taxa de cobertura do dito mecanismo de publicitação é injustificadamente baixa, de acordo com admissão do próprio regulador. Não se resolvem todos os problemas através da transparência absoluta, admitamos; mas a arbitrariedade não ajuda. Usar a digitalização da contratação pública como ferramenta de propaganda, fulanizando quem a critica, apodando-nos de populistas, demagogos e anti-competição, contribui para reverberar uma noção dominante na sociedade portuguesa: falem pouco e falem fininho, se querem ter palco. Mas nem toda a gente quer palco; há quem queira voz para todas e todos.
4. Há cerca de vinte anos, uma socióloga, infelizmente já falecida, escrevia sobre a Sociedade das Pessoas Interessadas em Coisas Aborrecidas. Nas economias da atenção, o gosto por coisas aborrecidas é desvalorizado. A República não é sexy. A República não é um hashtag no Instagram. Não há influencers a fazer selfies com a República. Embora 21% da despesa pública se refira a contratos públicos, o tema é aborrecido. Embora a contratação pública, em 2019, ascendesse a 9,2% do PIB, o tema é aborrecido. Os ajustes directos são uma curiosa excepção: como são ajustes e directos, a desarticulação social e política que prevalece nesta República passa a ter as suas iluminuras. Se fossem “procedimentos não-competitivos urgentes”, qual seria o resultado? Uma República revitalizada exige mais que raiva ou fúria. Exige-nos justiça anti-justiceira.
5. A despolitização da contratação pública é uma táctica. O desinteresse pela questão é socialmente organizado. Tudo isto é óbvio. Sem termos em conta a sua dimensão política, reduzimo-la a uma operação em mercado aberto. Informação perfeita e actores perfeitos. É por isso que o Código dos Contratos Públicos mantém um silêncio conspícuo a respeito de prioridades. É por isso que a maioria dos procedimentos obedece ao critério do menor preço ou custo: a razão técnica impera onde a despolitização lhe abre caminho.
Luís Pais Bernardo é Historiador e um dos especialistas da TI-PT na área da Contratação Pública, colaborando ativamente nos projetos Pacto de Integridade e Transparência Hotspot