Ser denunciante

[Artigo de opinião de João Dias Pacheco, advogado, denunciante e Vogal da Direção da Transparência e Integridade.
João Dias Pacheco foi um dos denunciantes do caso em que os ex-dirigentes da Águas de Coimbra (AC) são suspeitos de crimes de abuso de poder. Com outro funcionário da AC, Dias Pacheco constituiu-se assistente no processo e há mais de dez anos que a denúncia domina a sua vida. Nos últimos anos sentiu-se “perseguido e alvo de provocações e ameaças dentro e fora do trabalho, […] sem grande esperança num bom desfecho” .]

Tal como refere Alberto Costa, Ministro da Justiça, em “Prevenir a corrupção – Um guia explicativo sobre a corrupção e crimes conexos” [(2007)], elaborado pelo Gabinete para as Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação do Ministério da Justiça (GRIEC), com a colaboração da Polícia Judiciária, “para além da vertente repressiva em que tem papel central o tribunal – cuja intervenção é indispensável, no Estado de Direito, para poder haver responsabilização criminal -, é importante fornecer aos cidadãos informação acessível e clara que os habilite a participar em melhores condições na luta contra a corrupção e criminalidade conexa.

Sendo assim, este guia delimita o que se entende por corrupção e, a partir daí, tenta auxiliar na identificação de possíveis “casos”, fornecendo linhas orientadoras focadas na prevenção e, no limite, quando tal não seja possível, como reagir perante tais situações.

A este respeito, e como cidadão, direi apenas que é fundamental, para que as pessoas se mostrem dispostas a ajudar, que não se sintam sós, sujeitas aos desmandos de quem é denunciado.

Julgo que informação não falta, assim como a consciência de que já vai sendo tempo de acabar com o sentimento de impunidade por parte de quem envereda pelos caminhos da criminalidade económica.

Ainda que o n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 19/2008, de 21 de Abril, determine que os trabalhadores da Administração Pública – que denunciem o cometimento de infracções de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas – não podem, sob qualquer forma, ser prejudicados, a realidade é bem diferente, como se verifica pela situação de quem o faz.

Não estou aqui a questionar a responsabilidade de ninguém – que existe -, até porque tenho consciência das regras a cumprir. Limito-me a exprimir o que os denunciantes sentem, à verdade dos factos ocorridos, desde o dia da denúncia.

Como nem todos os denunciantes possuem formação jurídica – ao nível da participação de situações de corrupção -, e como o referido guia nada adianta sobre como proceder, após a mesma ter sido efectuada, subsiste a dúvida se as pessoas devem reagir ou não às retaliações daqueles que acusam.

E quando digo responder, é evidente que nunca será através de actos ilícitos – embora, por vezes, tenham vontade de os enfrentar -, mas utilizando os mecanismos legais ao seu dispor ou, eventualmente, utilizando a comunicação social, sobretudo aquela que se afirma como a consciência crítica e ética dos cidadãos – sendo lida na Procuradoria-Geral da República, nos Departamentos de Investigação e Acção Penal e na Polícia Judiciária -, invocando a condição de denunciantes, e assumindo a autoria dos actos que praticaram.

Mesmo que o não digam, é certo que os arguidos acabam por saber quem o fez, e não se inibem, muitas vezes, de exercer as mais diversas represálias, que sempre chegam ao conhecimento daquelas entidades.

Os denunciantes aguentam, com redobrado esforço, o que lhes fazem, receosos da sua impulsividade, ou dos efeitos de alguma atitude menos própria, pois não querem perder a razão, que os prejudique, tal como outros já a perderam, há muito tempo, não fazendo caso algum da condição de arguidos ou da sua cumplicidade com os mesmos.

Procuram, sempre, pensar no trabalho profícuo da Polícia Judiciária, na coordenação eficiente dos Departamentos de Investigação e Acção Penal, isto é, nada fazer, que possa afectar os inquéritos e as diligências que, obviamente, são promovidas no seu âmbito.

Ignoram o que lhes fazem, ou melhor, pensam que não é nada com eles, apesar de terem de suportar a sua presença constante, e outros comportamentos condenáveis, com o sentimento de impunidade que vão alardeando perante todos.

Acham que a retaliação, de que são vítimas, será por uma boa causa, embora não percebam o porquê, pois o mais sensato seria, no conselho de uma justiça vigilante aos actos que vão sendo praticados pelos arguidos, sugerir-lhes contenção naquilo que fazem.

Os processos – até pelo segredo de justiça, que os impede de saber o que se passa -, insistem em marcar um compasso lento, ainda que pelas razões mais atendíveis, como se depreende, por exemplo, da notícia publicada no “Diário Económico”, de 29 de Julho de 2008, ao referir que, segundo dados divulgados pela Procuradoria-Geral da República, estavam a decorrer 783 inquéritos relacionados com a criminalidade económica.

È este estado de impotência em que ficam os denunciantes, é este limbo que os envolve -, que os leva a colocar em causa tudo o que fizeram, não só a dedicação ao serviço público onde estão e às pessoas que nele trabalham, mas sobretudo o ímpeto – que alguns, por manifesto exagero, já designaram de justiça e de coragem -, de denunciarem o que, infelizmente, chega ao seu conhecimento.

A sua convicção é que ficaram à mercê da justiça – na qual têm de acreditar -, mas a sua determinação – que pensavam que não tinham -, vacila, cada vez mais, perante a humilhação e vexame a que são sujeitos pelos impunes e transgressores.

Será uma experiência dura – eu diria mesmo surreal -, e a espera para ser feita a justiça é terrível. Chegam ao ponto de, por vezes, questionarem-se a si próprios se deviam ter feito o que fizeram, se mais não valia pensarem que não era nada com eles e irem-se embora dos seus locais de trabalho, por sugestão dos próprios denunciados.

Passam os meses, e até mesmo anos, em que estão na “prateleira”, e o trabalho que fazem é pouco, ou nenhum. Faz parte da estratégia, revela o carácter de quem o faz, que não se atemoriza com a condição de arguido, e a cumplicidade de outros, que actuam por subserviência.

É triste ver que poucas são as pessoas que falam com os denunciantes, e as que o fazem, é sempre com receio. Outras há que, por terem sido beneficiadas pelos denunciados, sussurram entre si, quando se cruzam com eles nos corredores de um poder em decadência.

Uns olham com despeito – talvez por estarem a colocar em causa quem os protege e lhes concede honrarias – outros sentem pena dos denunciantes, que nunca pensaram passar por algo semelhante.

Fala-se tanto de corrupção, e apela-se à sua denúncia, mas poucos saberão o impacto que tudo isto causa na vida das pessoas. Não são momentos, mas dias intermináveis.

Os denunciantes esperam a mão pesada da justiça, para todos aqueles que transformaram a sua vida no tormento que é. E anseiam ainda mais: que a verdade seja aplaudida, e que a mentira – e o engodo -, fique à disposição de julgadores idóneos e com moral.

Têm esperança nessas pessoas, mesmo sabendo – tal como disse Maria José Morgado, Directora do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, no dia 24 de Junho de 2008, na conferência/debate sobre a “Corrupção e o Poder Local”, promovida pela Associação para o Desenvolvimento Económico e Social/ SEDES – a que se referiu a edição do “Público” do dia seguinte -, que “há dificuldade da sociedade portuguesa em compreender a denúncia” , e o que a preocupa é que os tribunais “deixam os denunciantes entregues a si próprios. Não há celeridade nestes casos. Isso é vital, uma decisão rápida, pronta, clara.

É evidente, tal como respondeu a Directora do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, na entrevista ao “Diário Económico”, de 6 de Agosto de 2008, que não convém envolver-se emocionalmente com os processos que investiga. Segundo ela, não é difícil: “Temos de estar preparados para ter distância em relação aos casos. Estes não podem ter sentimentos, embora exijam o conhecimento do aspecto humano, porque estamos sempre a decidir sobre pessoas, sobre a vida das pessoas e sobre a culpa das pessoas. A pessoa é sempre a questão central do processo.

Apesar do tempo decorrido, resta aos denunciantes a possibilidade, ou melhor, o direito de se dirigirem às únicas pessoas em quem devem confiar, que sempre terão a obrigação de os ajudar.

Não lhes ocorre nada de especial, que devam dizer, para além do que já deram conta, cumprindo uma obrigação cívica, um ónus de cidadania. É aquilo que ainda sentem, com maior tristeza e desencanto, mesmo ouvindo Marcelo Rebelo de Sousa, no dia 29 de Março de 2009, afirmar que quem é constituído arguido no exercício das funções públicas tem o dever ético e moral de se demitir.

A saúde começa a ressentir-se. Ainda que tentem esconder o seu sofrimento, sabem como é difícil fazê-lo. E ao dizerem isto, não o fazem de forma a condicionar a actuação que se impõe. É apenas uma evidência.

Sendo assim, ou se ausentam do local, que está a destruí-los, e o pouco que ainda lhes resta. Ou terão de recorrer à ajuda médica, mesmo que lhes digam que darão uma imagem de fraqueza e desalento.

Como é possível que quem denuncia, se tenha de esconder ou ir-se embora? Como é que se admite que o arguido, em posição hierárquica acima do denunciante, continue a exercer funções e a sua autoridade sobre quem o denunciou? E o que dizer daqueles que, não sendo ainda arguidos, executam as represálias impostas por quem os nomeou?

Parece-me que a justiça confia muito no discernimento dos denunciados, e de quem os serve. A retaliação vê-se pelos gestos. Sente-se nas palavras verbalizadas por quem actua a seu mando. E as atitudes falam por si. A justiça admite este cenário, daí o artigo 4.º da Lei n.º 19/2008, de 21 de Abril. O que faz?

Protege os denunciantes? Afasta os corruptos do cenário do crime? Não. Permite o vexame e a humilhação dos denunciantes entregues a si mesmos.

A justiça que estimula cada cidadão a denunciar os crimes de corrupção é a mesma que manda, para casa, com atestado médico, os denunciantes que, condicionados pela demora das investigações, dão-se conta de uma carreira profissional a desmoronar e um estado de saúde a agravar-se de dia para dia.

É preciso fazer algo por estas pessoas. Se ainda existe um Estado de Direito, este nunca poderá abandonar quem foi capaz de dar o rosto por ele, sobretudo quando está em causa a boa gestão da coisa pública. Mais do que um discurso, é uma nova prática que se impõe. Para bem de todos, e até dos arguidos.

 

João Dias Pacheco

Advogado e Vogal da Direção da TI-PT

 

Sabe mais sobre a nossa campanha sobre proteção de denunciantes em www.transparencia.pt/proteger-quem-denuncia/