Para que serve a Transparência em tempo de COVID-19?
Desde o primeiro momento desta crise indefinível que se abateu sobre nós que vimos alertando para a importância da transparência perante a crise provocada pelo COVID-19:
“É essencial que a transparência, a abertura das contas públicas e a busca por integridade sejam não apenas preservadas, mas também asseguradas a todo o setor da saúde. (…) Entre elas estão a divulgação de pesquisas sobre vacinas e tratamentos, a proteção de quem denuncia irregularidades na saúde e a garantia de igualdade de acesso a tratamentos que podem salvar vidas”.
Num artigo recente, da autoria de Ádám Földes, companheiro na Transparency International, o acesso à informação é explicitado como um caso de vida ou morte ante a evidência de que tanto é imprescindível decidir bem com acesso a informação de qualidade, como é fundamental garantir a confiança dos cidadãos, o que só se faz por via de uma comunicação clara e atempada por parte dos governos, extensível a todos os setores da atividade pública e não apenas à área da saúde. E que jamais podemos admitir que o Estado de Emergência possa, por si só, comportar a restrição arbitrária do acesso à informação, como se tal fosse um pré-requisito necessário para combater o vírus.
Pelo contrário, já todos e todas percebemos que a prevenção e combate ao COVID-19 não se faz apenas nos hospitais e centros de saúde e que, por isso, é imperioso garantir que a transparência, a responsabilização e a prestação de contas vá bastante além deste sistema.
Convém não esquecer, agora que vivenciamos em crise e amanhã quando formos esmurrados pelos seus efeitos, para que serve a transparência, e porque é importante assegurar que esta não se esgota nos comunicados e conferências de imprensa que têm sido realizados pelos governantes e instituições públicas. Assumir que estas iniciativas são um reflexo do combate ao coronavirus não retira nem a sua propriedade nem o seu mérito, mas não devemos nem podemos contentar-nos com o seu caráter excecional, nem nos quedar-nos na posição de recetores passivos/as que tomam como boa informação aquela que nos é prestada, tantas vezes sem dados objetivos a suportá-la.
O acesso à informação é um direito reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 19.º) e a monitorização cívica ativa e sistemática, como os vários Pactos de Integridade em curso na Europa e em Portugal, é sinal de uma democracia robusta, de gente comum que investiga e questiona porque se importa com o bom governo e a sustentabilidade das decisões. Numa altura em que tanto se fala de responsabilidade, alteridade e solidariedade, conviria perceber que a empatia se constrói também – e muito – com base na informação e no conhecimento.
Em Portugal, a Lei 26/2016, de 22 de agosto regulamenta o acesso à informação administrativa e ambiental (LADA), e uma Comissão [independente] de Acesso a Documentos Administrativos (CADA) é responsável por zelar pelo cumprimento da lei.
Os desafios que se colocam à transparência e acesso à informação no nosso país não são novos nem desconhecidos. Há muito que defendemos que o acesso à informação faz parte de um esforço mais alargado no sentido de tornar as atividades governamentais mais transparentes, abertas e próximas dos cidadãos, e, infelizmente, o estabelecimento do regime regulatório e institucional de acesso à informação só veio revelar o que já conhecíamos: este direito continua mitigado pela falta de vontade política e pelos humores dos dirigentes, e que há uma carência generalizada de mecanismos e sistemas de produção e disseminação de informação capazes de a transferir para o espaço público em condições de ser apropriada e compreendida.
Todos estes entraves subtraem à democracia um universo importante de informação social, económica, ambiental e civicamente relevante, o que se traduz na impossibilidade de os cidadãos conhecerem em detalhe a ação de quem governa e de avaliar o seu trabalho.
Por ação da TI-PT, o I Plano Nacional de Administração Aberta contempla um compromisso específico para reforço da LADA. O que defendemos é claro:
- Nomeação e identificação da trabalhadora ou trabalhador responsável pelo acesso à informação administrativa e ambiental (RAI) no website institucional de todas as entidades públicas elegíveis ou, em alternativa, disponibilização de lista agregada, em formato legível por máquina e atualizada com periodicidade trimestral, no portal gov;
- Listagem e publicitação das tipologias de informação e dados produzidos e geridas por cada entidade pública elegível no portal gov;
- Disponibilização de metadados legalmente disponibilizáveis associados a cada documento, nomeadamente a entidade emitente, a data do pedido, a data da disponibilização e o responsável pela boa prossecução do pedido de acesso;
- Implementação de uma lista com entidades públicas e agentes públicos com boas práticas no âmbito do acesso à informação, em particular a quantificação do número de dias entre o pedido e a disponibilização;
- Disponibilização de informação sobre políticas e práticas de acesso à informação relativas a entidades públicas e agentes públicos com boas práticas no âmbito do acesso à informação, e com o tempo médio de disponibilização da informação.
Estas cinco medidas sintéticas não consolidam, claro está, toda a informação nuclear para avaliação da boa governança, nem instituem por si só a transparência em funções públicas, mas são ferramentas essenciais para a prevenção da corrupção.
Nestes tempos extraordinários, cada cidadã e cada cidadão não é apenas agente de saúde pública: somos todas e todos agentes de boa governança pública.
Para tanto é fundamental que nos seja disponibilizada informação que nos torne capazes de monitorar e avaliar as decisões, nomeadamente aquelas que dizem respeito à despesa pública.
Todo o esforço e todo o compromisso se esfumarão em vontade própria se a República não for transparente, que é como quem diz, se não for capaz de engajar neste esforço conjunto de combate ao COVID-19 cidadãos, empresas e instituições, que tomam responsabilidades públicas como suas.
A quarentena não é extensível à democracia nem à participação cidadã. E hoje, mais do que nunca, o acesso a informação pública de qualidade é um imperativo.
Karina Carvalho, Diretora Executiva TI-PT