Seremos capazes de proteger quem denuncia?
A pouco mais de dois meses da entrada em vigor do novo diploma, pouco ou nada se sabe sobre os passos que estão a ser dados para garantir a aplicação da lei de proteção de denunciantes nas entidades obrigadas, nomeadamente no setor público.
A 20 de dezembro último foi publicada a Lei n.º 93/2021 estabelecendo o Regime Geral de Proteção de Denunciantes de Infrações (RGPDI), que transpôs para a legislação nacional a Diretiva Europeia 2019/1937 do Parlamento e Conselho Europeus relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União.
Na TI Portugal somos críticos, tendo presente que a lei portuguesa apenas garante os padrões mínimos de proteção inscritos na Diretiva, mas sobretudo porque não só o processo de transposição não foi transparente nem inclusivo, como continua a existir insuficiente reflexão sobre o modo como se operacionalizará a sua implementação pelas entidades obrigadas, especialmente no setor público.
No âmbito do novo regime, todas as entidades públicas e privadas com 50 ou mais trabalhadores estão obrigadas garantir a proteção das pessoas que denunciem ou divulguem publicamente uma infração com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional.
Ou seja:
- todos os trabalhadores, prestadores de serviços, contratantes, sub-contratantes e fornecedores;
- quaisquer pessoas que atuem sob supervisão e direção da entidade;
- titulares de participações sociais ou pessoas pertencentes a órgãos de administração ou de gestão ou de fiscalização ou de supervisão, incluindo membros não executivos;
- voluntários ou estagiários, independentemente da remuneração;
- terceiros próximos do denunciante ou que o tenham auxiliado de alguma forma, designadamente colega de trabalho ou familiar, e possa ser alvo de retaliação num contexto profissional; e
- outras pessoas coletivas ou entidades equiparadas que sejam detidas ou controladas pelo denunciante, para as quais o denunciante trabalhe ou com as quais esteja de alguma forma ligado num contexto profissional.
O RGPDI aplica-se a denúncias em matérias diversas, desde a contratação pública, passando pela saúde pública, até à criminalidade violenta e outras, e contempla como principal mecanismo a criação obrigatória de canais internos de denúncia ou o recurso a operadores externos especificamente dedicados que garantam:
- a possibilidade de se efetuarem denúncias de forma confidencial e anónima;
- o registo e conservação das denúncias recebidas por um período mínimo de cinco anos;
- a notificação do denunciante da receção da denúncia no prazo de sete dias com informação da possibilidade e requisitos para a apresentação de denúncia externamente, bem como das autoridades competentes para a receber.
Quem não cumprir fica sujeito a um regime sancionatório, que prevê contra-ordenações graves e muito graves pela violação dos deveres e obrigações previstos na lei, puníveis com coimas até 25 mil euros para as pessoas singulares e até 250 mil euros para as pessoas coletivas.
Além disto, as entidades obrigadas estão proibidas da prática de atos de retaliação contra o denunciante, cabendo-lhes provar em juízo próprio que não os praticaram.
Considera-se ato de retaliação o ato ou omissão que, direta ou indiretamente, ocorrendo em contexto profissional e motivado por uma denúncia ou divulgação pública, cause ou possa causar ao denunciante, de modo injustificado, danos patrimoniais ou não patrimoniais até dois anos após a denúncia ou divulgação pública, sendo que, salvo prova em contrário, presumem-se motivados por retaliação:
- alterações das condições de trabalho, tais como funções, horário, local de trabalho ou retribuição, não promoção do trabalhador ou incumprimento de deveres laborais;
- suspensão de contrato de trabalho;
- avaliação negativa de desempenho ou referência negativa para fins de emprego;
- não conversão de um contrato de trabalho a termo num contrato sem termo, sempre que o trabalhador tivesse expectativas legítimas nessa conversão;
- não renovação de um contrato de trabalho a termo;
- despedimento;
- inclusão numa lista, com base em acordo à escala setorial, que possa levar à impossibilidade de, no futuro, o denunciante encontrar emprego no setor ou indústria em causa;
- resolução de contrato de fornecimento ou de prestação de serviços; e
- revogação de ato ou resolução de contrato administrativo, conforme definidos nos termos do Código do Procedimento Administrativo.
Adicionalmente aos canais internos, estão acessíveis aos denunciantes canais externos de denúncia geridos por autoridades competentes, como o Mecanismo Nacional Anti-Corrupção, o Ministério Público e órgãos de polícia criminal, o Banco de Portugal e outras entidades reguladoras, as inspeções-gerais e entidades equiparadas e outros serviços centrais da administração direta do Estado dotados de autonomia administrativa, os institutos públicos, associações públicas ou as autarquias locais.
Tais entidades terão também, naturalmente, que criar canais de receção de denúncias ajustados aos preceitos inscritos na lei, estando obrigadas, entre outras, a notificar os denunciantes da receção da denúncia no prazo de sete dias, a comunicar as medidas previstas ou adotadas para dar seguimento à denúncia e a respetiva fundamentação no prazo máximo de três meses a contar da data da receção da denúncia ou de seis meses quando a complexidade da denúncia o justifique, sendo que os denunciantes podem requerer, a qualquer momento, que as autoridades competentes prestem informação sobre resultado da análise efetuada à sua denúncia no prazo de 15 dias após a submissão.
É igualmente relevante o facto de os denunciantes poderem ainda decidir pela divulgação pública das suas denúncias quando:
- consubstanciem infrações que possam constituir um perigo iminente ou manifesto para o interesse público;
- tenham motivos razoáveis para crer que determinada infração, atendendo às suas circunstâncias específicas, não pode ser eficazmente conhecida ou resolvida pelas autoridades competentes;
- existe um risco de retaliação., inclusive tratando-se de denúncia formalizada num canal externo; e
- tenham apresentado denúncias sem que tenham sido adotadas medidas adequadas nos prazos previstos.
A avaliar pelo que se conhece da implementação de outros regulamentos europeus, o Estado entregará ao mercado a implementação da lei e por isso, nos dias que correm, são já muitos os operadores privados a oferecer soluções “tudo incluído”, como se a proteção de denunciantes se resumisse a mais um sistema de compliance.
Cabe, pois, à Assembleia da República, que discutiu e aprovou o novo regime, e a todos nós que dele beneficiaremos, cuidar que não se trata simplesmente de cumprir a lei, mas assegurar que empresas e organizações protegem, verdadeiramente, quem denuncia.
Conhece as nossas recomendações na página dedicada à Proteção de Denunciantes.