Uma boa notícia: Governo recua na possibilidade de Vistos Gold através de fundos de investimento imobiliário

Manter a possibilidade de acesso aos Vistos Gold através de fundos de investimento imobiliário só amplificaria os riscos de corrupção e de branqueamento de capitais.

Numa altura em que se discute o veto do Presidente da República ao pacote Mais Habitação apresentado pelo governo, vale a pena recuperar algumas notas sobre o fim dos Vistos Gold, uma das medidas inscritas na proposta do executivo liderado por António Costa com o objetivo de combater a especulação imobiliária.

A medida, apresentada em fevereiro deste ano, foi aprovada no Parlamento no passado mês de julho.

Assim que foi conhecido o objetivo de acabar com os Vistos Gold, a TI Portugal alertou para a necessidade de avaliação do programa, baseando-se nas recomendações da UE no sentido de acabar com a concessão de residência através de investimento, e em investigações jornalísticas demonstrando que não existe qualquer controlo sobre a atribuição destes vistos, nomeadamente a pessoas provenientes de jurisdições associadas a esquemas de lavagem de dinheiro.

Pelo menos desde 2019 que o Parlamento Europeu se vem pronunciando contra a manutenção dos Vistos Gold, e logo em março de 2022, após a invasão da Ucrânia pela Rússia, os Eurodeputados exortaram a Comissão Europeia a apresentar uma iniciativa legislativa nesse sentido. A propósito, um trabalho da Investigate Europe publicado em fevereiro de 2023 revelou que mais de 50% dos beneficiários de Vistos Gold em Portugal são provenientes das 30 principais jurisdições de branqueamento de capitais do mundo.

Não é, pois, novidade para ninguém que os Vistos Gold aumentam substancialmente os riscos de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo (BC/FT), assim como também não são desconhecidas a falta de transparência, diligência devida e fraca governança que o esquema comporta. Sobretudo quando associados à aquisição de imobiliário.

Em fevereiro de 2019 o serviço de pesquisa do Parlamento Europeu (PE) publicou um briefing sobre lavagem de dinheiro em transações imobiliárias, onde se pode ler que “a utilização abusiva do setor imobiliário é desde há muito descrita como uma das mais antigas formas conhecidas de branqueamento de capitais obtidos ilicitamente. O setor imobiliário é tão atraente para os criminosos como para qualquer investidor (…) O setor imobiliário proporciona um verniz de respeitabilidade, legitimidade e normalidade. Isto aplica-se tanto a imóveis residenciais e comerciais, no âmbito de uma estratégia de investimento fiável e rentável”.

Este documento do PE não cita a TI Portugal, a Transparency International, a Global Witness, ou quaisquer outras organizações da sociedade civil, mas estudos e relatórios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e do Grupo de Ação Financeira (GAFI) sobre as vulnerabilidades do setor imobiliário relativamente a esquemas de lavagem de dinheiro.

De entre estas vulnerabilidades destaca-se o papel de intermediários e facilitadores, que por agirem fora do setor financeiro, vão conseguindo fugir aos controlos de segurança e procedimentos de verificação instituídos nas legislações nacionais e europeias. É verdade que já existe regulamentação específica para a prevenção do branqueamento de capitais no setor imobiliário, nomeadamente deveres de diligência para empresas e agentes, mas também é certo que uma fatia que cremos ainda substancial deste mercado em Portugal continua nas mãos de pessoas e entidades não obrigadas, e/ou com um papel na intermediação muito pouco transparente.

Outra das principais vulnerabilidades, que inclusive corresponde ao primeiro passo para prevenir o branqueamento de capitais no setor imobiliário, relaciona-se com a identificação dos beneficiários efetivos, ou seja, aquelas e aqueles que são verdadeiros donos das propriedades e das somas investidas. Quem procura lavar dinheiro através da aquisição de imobiliário não só está disponível para pagar acima do preço de mercado, como está também apostado em gastar uma fortuna para ocultar a sua identidade.

A leitura de uma investigação recente do Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) sobre a compra de propriedades em Paris e na Riviera Francesa por parte de criminosos e corruptos é a este respeito muito esclarecedora, bem como relatório da Transparency International focando o mesmo tema.

Quanto aos fundos de investimento imobiliário, são tidos como um bom negócio para investidores individuais que procuram receber dividendos de investimentos imobiliários sem terem de financiar ou gerir propriedades, mas igualmente uma fonte de preocupação para quem quer impedir o branqueamento de capitais.

Tal como é referido pelo Global Financial Integrity (GFI), um Think Tank com sede em Washington especializado em fluxos financeiros ilícitos, os fundos de investimento são um veículo particularmente útil para mascarar a proveniência ilegal do dinheiro e branqueá-lo. O documento, publicado em dezembro de 2022, foi feito com base em estudos de caso de países da América Latina, nomeadamente o Brasil.

Mas este é um problema que extravasa em muito o âmbito regional. Por exemplo, em 2020, ficámos a conhecer, através das BlueLeaks, um relatório do FBI dando nota da utilização de fundos de investimento para facilitar transações ilícitas, financiar a criminalidade organizada e fugir a sanções.

O denominador comum é a falta de regulação específica, ou a fraca aplicação da regulação existente. E o facto é que, nos EUA, dois anos depois da publicação do relatório do FBI, a efetividade das sanções à Rússia teve como grande obstáculo justamente as falhas no sistema de prevenção do branqueamento de capitais, que continuou a permitir que os fundos de investimento, e outros instrumentos financeiros semelhantes, não tivessem de identificar a origem das transações e os beneficiários efetivos.

Em Portugal, as falhas de supervisão e de regulação são por demais conhecidas. Além da deficiente implementação das leis europeias, continuam por resolver as insuficiências identificadas pelo GAFI nas sucessivas avaliações, a última das quais datada de 2017.

Nesse Relatório de Avaliação Mútua (MER) recomenda-se, entre outras, que o país defina um programa de ação abrangente para acautelar os riscos de BC/FT identificados, com prioridades, cronogramas e foco específico em setores e cenários de maior risco, e que dote as entidades supervisoras de recursos proporcionais aos setores de risco mais elevado.

Já o relatório de acompanhamento publicado em 2021 continua a demandar que Portugal apresente relatórios de progresso a cada 2 anos, dado que a análise do GAFI permanece atual: empresas e profissões não financeiras e seus supervisores continuam sem acautelar devidamente os riscos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo que enfrentam. Mas também o setor financeiro: basta lembrar o escândalo Luanda Leaks e a total falha de supervisão do Banco de Portugal.

O sistema nacional de prevenção do BC/FT estabelece um conjunto de deveres aplicáveis às entidades obrigadas. Neste âmbito, os fundos de investimento, designadamente imobiliários, estão subordinados à supervisão da Comissão de Mercados e Valores Mobiliários (CMVM) e a regulamentação específica. Em concreto, e no que se refere a deveres de identificação, os fundos de investimento são obrigados a identificar os seus clientes, ou seja, os titulares das unidades de participação/titularização ou obrigações de titularização, ou o(s) beneficiário(s) efetivo(s) destas, na situação em que estas são comercializadas pelas entidades gestoras/administradoras.

Resta saber se esses deveres são integralmente cumpridos, e em que condições se efetiva a supervisão e fiscalização.

Opinião de Karina Carvalho, Diretora Executiva da TI Portugal